Qualquer dupla mixuruca tem jatinho, cobra uma fortuna por show. E o dinheiro público custeia isso tudo.

“Não é Lei Rouanet”, se apressam em dizer. Mas vá ver quem paga

Chitãozinho e Xororó na época do circo e Gusttavo Lima na era dos jatinhos.

Por #MouzarBenedito

Escrito en OPINIÃO el 2/6/2022 · 14:07 hs

Eu hoje vou chover no molhado: serei mais um a comentar os cachês milionários de artistas sertanejo-bregas que fingem não receber dinheiro público. Mas vou fazer isso contando uns causos curtos.

Começo pelo contrário: um tempo que duplas caipiras legítimas se apresentavam em circos. Na minha terra mesmo, Nova Resende (MG), de vez em quando chegava um circo que levava alguma dupla para cantar nele. Dupla consagrada, relativamente famosas, era assim o pagamento: 50% da bilheteria. Em dinheiro atual, uma entrada deveria custar uns R$ 20,00. Depois das apresentações normais do circo (palhaço, trapezista, malabarista, comédia ou drama teatral - quando ia ter show, esta parte teatral ficava fora) a dupla se apresentava. Quantas pessoas cabiam no circo? Na minha memória, no máximo umas duzentas. Ou seja, a arrecadação seria de no máximo R$ 4 mil - R$ 2 mil para o circo e outro tanto para a dupla, quer dizer, R$ 1 mil para cada um.

Parece pouco? Pois acho que até exagerei, porque as duplas viajavam de ônibus e se hospedavam na casa de algum fã. Não tinham dinheiro nem para comprar um carro.

Lá por 1990, já se iniciava com Chitãozinho e Xororó uma nova fase que eu achava ruim mas piorou muito, desaguou no atual “sertanejo universitário”.

Faço um parêntese aqui: um amigo de Belo Horizonte me contou que um menino filho de uma amiga dele perguntou à mãe: “Esses universitários não se formam nunca? Não aguento mais ouvir esse pessoal”.

Volto à história. Nessa época, surgiu uma revista chamada Som Sertanejo e me chamaram para colaborar nela. Escreveria causos, matérias grandes sobre coisas da cultura brasileira (cachaça, fumo de corda, rede de dormir..) e entrevistas com artistas da área. Mas com uma condição: entrevistar essas duplas, não! Só entrevistaria gente que eu achava que merecia. Assim, entrevistei Inezita Barroso, Rolando Boldrin e a dupla Tonico e Tinoco, que, se não me engano, completava 50 anos de carreira. Milhares e milhares de shows, e moravam em apartamentos simples no bairro da Moóca, em São Paulo.

Não eram pobres, mas também não eram milionários, numa época em que duplas bem ruinzinhas já cobravam uma boa grana por show e tinham ônibus, fazendas...

Agora vemos isso: qualquer dupla mixuruca tem jatinho, cobra uma fortuna por show. E o dinheiro público custeia isso tudo. “Não é Lei Rouanet”, se apressam em dizer. Mas vá ver quem paga.

Um único artista cobrar R$ 1,2 milhão por show, mais despesas de hospedagens no melhor hotel da região e um monte de mordomias?! Dinheiro público... O grandalhão de “Coração de Papel”, Sérgio Reis, diz que é a prefeitura que paga, não dinheiro público. E o dinheiro da prefeitura não é público? Se não for de imposto direto a ela, é dinheiro dos cofres federais (até o BNDES!). Vá ver se as cidades que pagam isso aos “sertanejos” têm uma biblioteca pública, por exemplo. R$ 1,2 milhão dá pra montar uma de ótima qualidade. Ou pagar um salário melhor aos professores, ou fazer obras úteis que as prefeituras não fazem por “não terem dinheiro”.

Livro, só como justificativa para um show

Agora entro nos causos que queria contar, é sobre como gasta-se dinheiro a rodo com esse pessoal enquanto a literatura, se depender dos gastões, morre à míngua.

Uma das minhas irmãs fez o curso de jornalismo na Cásper Líbero e se formou há quase vinte anos. Ela e uma colega fizeram como Trabalho de Conclusão de Curso um livro sobre o grande compositor caipira João Pacífico. Ficou muito bom. Imprimiram só uns poucos exemplares, para a banca, para elas mesmas e um pra mim. Li e achei que devia publicar, mas alguma editora se interessaria?

Elas decidiram ir a Cordeirópolis (SP) terra do compositor e pedir apoio à prefeitura. O prefeito marcou encontro com elas num restaurante, à noite. Lá, folheou o livro e se mostrou impressionado. Mostrou aos frequentadores do restaurante e logo vários queriam comprar o livro. A impressão de uma tiragem razoável custaria na época R$ 5 mil ou pouco mais. Era um livro que eu imaginava que a prefeitura iria adotar nas suas escolas. A resposta do prefeito: não topava bancar a publicação, mas se elas publicassem, ele faria um grande show de lançamento com muitas duplas cantando músicas do João Pacífico. Quer dizer, gastar R$ 5 mil com a publicação do livro, não dava. Mas gastar umas dez ou vinte vezes esse valor para fazer um show de lançamento do livro, tudo bem.

Pagar pra trabalhar?

A cidade de Olímpia, no estado de São Paulo, promove em agosto, todos os anos (acho que não na pandemia), a maior festa de folclore do Brasil. É uma festa boa, leva muita gente para festejar a cultura popular brasileira. Acho que os cachês que pagam aos artistas não é alto.

Um ano, um dos organizadores me convidou para fazer uma palestra sobre cultura popular, entrando no assunto dos nossos mitos de origem indígena, como o Saci, a Iara, o Curupira etc. Tenho alguns livros sobre isso.

Topei, claro. Perguntei sobre a viagem e a hospedagem. Eu topava ir de ônibus, gastaria pouco. E não exigiria nenhum hotel estrelado. Ele me falou que podia me hospedar na casa dele, porém a viagem seria por minha conta. Mas eu teria o direito de vender meus livros depois da palestra. Respondi que a venda de livros nesses eventos é mínima, talvez vendesse uns quatro ou cinco exemplares, sem contar que geralmente pedem para deixar de graça livros para a biblioteca local. Acabaria pagando para fazer a palestra. Ele não gostou, e não fui. Enfim, é isso: para os grupos musicais tinha cachê, essas coisas. Não muito, mas tinha. Eu só queria pagamento da despesa que teria.

Pagar pra trabalhar, de novo!

Sempre que ia à minha terra, topava ir ao colégio conversar com os estudantes, e deixava alguns livros para a biblioteca.

Depois de aposentado, continuei fazendo isso, mas com o passar dos anos minha grana foi minguando e reduzi minhas viagens. E essas viagens eram quase sempre curtas, em finais de semana com feriadão. Numa dessas vezes, há uns oito ou dez anos, estava tendo uma festa lá, e soube que levaram uma dupla sertaneja que eu não conhecia, o que não é novidade, pois só sei o nome de algumas muito faladas, não ouço nenhuma. Cachê para a dupla: R$ 180 mil.

Tempos depois fiz minha última viagem pra lá, praticamente zerado de dinheiro. Uma professora perguntou se eu topava ir uns quinze dias depois fazer uma palestra numa escola de alfabetização de adultos. Falei que topava sim, e levaria uns livros de causos para o pessoal, de graça. Mas aquela viagem que fiz era com a última grana que podia gastar. Só poderia ir se a prefeitura pagasse a passagem de ônibus, ida e volta, e duas noites num hotel que não era caro. Refeições, eu mesmo pagava. Fiquei sendo considerado um mercenário.

Quanto vale o show?

Termino com uma historinha que não envolve dinheiro público, mas a mentalidade de certas pessoas.

Numa festa do Saci, em São Luiz do Paraitinga, lancei o livro Anuário do Saci. Uma amiga cuidou da venda, ao meu lado. Um rapaz pegou um livro, folheou, sorriu, folheou mais, riu... perguntou quanto custava, e quando soube que custava R$ 24,00 fez cara de surpreso. Eu via e ouvia tudo, achei que o rapaz não tinha “tanto” dinheiro e ia falar para a minha amiga vender pelo preço que ele quisesse, dez reais, cinco, o que fosse, porque parecia que ele gostou muito e não tinha dinheiro. Mas ele saiu rapidamente e não deu tempo.

No dia seguinte, fui tomar um café num bar, e vi um cartaz dizendo que ali se vendia ingressos para a apresentação de uma dupla sertaneja bem mequetrefe. Preço do ingresso: R$ 60,00. Aí entrou o mesmo rapaz e comprou dois, pra levar a namorada. R$ 120,00 reais por um show de uma hora e meia. Não topou gastar R$ 24,00 com um livro que poderia ler e reler por muitos dias, emprestar à namorada...

Difícil...

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