#mouzarbenedito

hudsonlacerda@diasporabr.com.br

O muro da Cohab e as notas de repúdio – Por Mouzar Benedito

Gostaria que para certas coisas houvesse uma justiça sumária

Por #MouzarBenedito

https://revistaforum.com.br/opiniao/2024/8/5/muro-da-cohab-as-notas-de-repudio-por-mouzar-benedito-163388.html

No domingo, 4 de agosto, fazendeiros de Mato Grosso do Sul atacaram mais uma vez #indígenas do povo #Guarani-Kaiowá, deixando dez feridos, dois deles gravemente, um com tiro na cabeça e outro atingindo no pescoço. “Ministério repudia”, diz a matéria publicada no caderno #Cotidiano da Folha de S.Paulo na segunda-feira.

A mesma aldeia já tinha sido atacada dois dias antes. E outros povos indígenas têm sido atacados violentamente, muitas pessoas são mortas. Ao ver a matéria da Folha, tive uma sensação desgraçada: a #violência contra indígenas, posseiros e sem-terra está tão comum que nem é noticiada no caderno principal, vai para o Cotidiano. Parece que virou cotidiano mesmo.

E lá vem nota de repúdio. Toda vez que isso acontece, há organismos e pessoas lançando notas de repúdio.

Aí me lembrei de uma #história antiga, sem um milésimo da gravidade da ação de grileiros, garimpeiros e outros que se dizem “pessoas de bem”.

O que vou contar parece não ter nada a ver com essas agressões atuais, e não tem mesmo, mas me faz pensar na falta de ação “do lado de cá”, das vítimas, sem justiça, com reações limitadas às famigeradas “notas de repúdio”.

Explico no fim do texto.

Mais ou menos no meio do governo da Erundina, na prefeitura de São Paulo, fui convidado para ser assessor de imprensa da Cohab. Aceitei e, no primeiro dia, logo de manhã, recebi um telefonema do editor de um jornal do bairro de Itaquera. Perguntou:

— Tem alguma novidade sobre o muro da Cohab?

Não sabia que muro era esse, pedi que me ligasse por volta das três horas da tarde que eu lhe daria resposta.

Perguntei aos colegas que história era essa e me contaram. Tinha um conjunto habitacional construído anos antes no bairro de Itaquera e, como as ruas do bairro quase não tinham movimento de carros, os moradores de um prédio transformaram uma das ruas em estacionamento. Os prédios da #Cohab não previam estacionamento, pois achavam que seus moradores nunca teriam carros. Mas vieram a ter. Aos poucos, uns moradores foram comprando fuscas, brasílias, kombis e outros carros, a maioria baratos. Com o tempo, as ruas até tinham movimento de carros, que precisavam desviar daquele pedaço.

Acontece que no início do governo #Erundina resolveram asfaltar as ruas do bairro, e naquela rua os asfaltadores deram de cara com um muro que interrompia a rua. O que fazer? Acionaram o Departamento #Jurídico da Cohab para derrubar o tal muro. Mas a coisa foi se enrolando, não resolviam nunca. E moradores de outros prédios começaram a reclamar. Pediam a derrubada do muro e o asfaltamento daquele trecho.

Fui falar com o presidente da Cohab, Vanderlei, boa gente, militante petista. Ele disse que estava esperando decisão judicial para poder derrubar o muro. Falei:

— Por que não derrubar logo? Por que ficar esperando uma decisão que não vem?

— O Fulano (não vou dizer o nome dele), chefe do Departamento Jurídico, diz que não pode, que é preciso esperar — respondeu.

— Esperar o quê? — discordei. — O muro foi construído ilegalmente, por que é preciso esperar uma decisão legal pra derrubar?

Discutimos mais um pouco e ele marcou um almoço com o chefe do Departamento Jurídico pra gente discutir isso. Num restaurante próximo, nós três começamos a conversa. E a coisa não fluía. Perdi a paciência e falei:

— Tá vendo, Vanderlei? Não é à toa que o PT tem fama de não decidir nada, fica em reuniões, obedece a uma #burocracia sem sentido, e nada. Se a gente derrubar o muro o que acontece? Os moradores do prédio vão poder recorrer à #Justiça? Que recorram. Se a Justiça está enrolando a Cohab até hoje, não vai enrolar pra eles também? Além disso, a gente derrubando o muro ilegal, com certeza, depois de muita demora, a decisão será a favor da Cohab.

O chefe do Departamento Jurídico espumava, querendo exigir a decisão judicial.

— Ora, os caras fazem coisas ilegais e a gente tem que esperar para desfazer o que fizeram? — chiei.

Ele falava:

— Nós não somos iguais a eles. Temos que fazer as coisas dentro da lei.

Fiquei irritado e falei novamente ao Vanderlei:

— Não é à toa que me disseram que virou gozação em Itaquera... O PT não tem coragem, é o que dizem.

Ainda comentei que dois tipos de burocrata levavam a sério certas coisas. Por exemplo: se para a aprovação de um projeto benéfico à população tivesse que ter vinte carimbos para seguir em frente, os “malufistas” (assim chamávamos os direitistas mais extremos) contavam e, se tivesse dezenove carimbos, exigiriam uma graninha por fora para aprovar; se o burocrata fosse petista, também conferiria, e se faltasse um carimbo, engavetaria o projeto por causa disso. Não importava se era um projeto bom ou ruim. Faltava um carimbo, e pronto! Contraditoriamente, eu argumentava, os petistas, que deviam não levar tão a sério as leis feitas pela elite, eram os mais legalistas. Isso naquele tempo, não acompanho como estão hoje.

Finalmente, o presidente da Cohab #decidiu. Foi até o gerente e pediu para fazer um telefonema (naquele tempo não existiam telefones celulares). Ligou pra regional da Cohab em Itaquera e ordenou:

#Derrubem o #muro!

Derrubaram, e os donos dos automóveis nem protestaram, sabiam que estavam errados. Contavam com a burocracia e a Justiça lenta para manter o muro...

Conto isso porque umas coisas me irritam nos “nossos” governos: uma falta de meter os peitos em certas situações. Grileiros ocupam terras, desmatam, queimam... E não acontece nada contra eles. Matam posseiros e indígenas pra tomar suas terras, e os governos (uns que são contra isso, os outros até os apoiam) ficam esperando uma decisão judicial que não vem. Donos de prédios desocupados não pagam impostos e mantêm os tais prédios só para especulação imobiliária, e nada acontece com eles, mas quando sem-teto os ocupam, a Justiça funciona...

E os #grileiros, #especuladores e outros aproveitadores da lerdeza da burocracia e da Justiça ainda acusam suas vítimas de serem “terroristas” ou coisas afins. Gostaria que a imprensa que acusa os sem-terra de “violência” publicasse um balanço de quantos #grileiros, #fazendeiros e #jagunços foram mortos nesses anos todos, e quantos #sem-terra, #posseiros e #indígenas foram assassinados por eles. São muitos os “nossos” mortos; e “deles”, praticamente nenhum. E eles nem ligam pra Justiça, confiando que contra eles ela não funciona. No máximo, alguns jagunços são presos depois de muitos anos de burocracia judiciária.

No caso do garimpo ilegal também acontece muito de contarem com a falta de vigilância, da lerdeza (ou cumplicidade) das autoridades para detonar o meio ambiente, acabar com rios, matar gente e animais poluindo a água que precisam... De uns tempos pra cá, finalmente, começaram a combater esse tipo de garimpo agindo pra valer, queimando as balsas deles.

Durante o governo do coiso, isso foi interrompido, e a pouca e insuficiente estrutura para impedir o crime dos garimpeiros ilegais foi reduzida a menos que o mínimo necessário, mas imagino que estejam recomeçando (ainda que não tenham estrutura para uma ação mais ampla e eficiente). Espero que aconteça muito mais vezes, radicalmente, pra valer. Fico feliz quando vejo fotos de uma balsa de garimpeiros incendiada. E raramente tenho a felicidade de ver grileiros sendo expulsos (só me lembro das terras da reserva indígena Raposa Serra do Sol, numa ação muito demorada).

A grande mídia, que diz ser contra a devastação da Amazônia, por exemplo, e que faz matérias contra as ações que aceleram as mudanças climáticas, na hora H, quando há um fato desses que chega à Justiça, fica totalmente a favor dos grileiros devastadores. É contra genericamente, mas de fato, trata a propriedade como coisa divina, mesmo que essa propriedade seja grilada, ilegal e criminosa.

E sobre os assassinatos de indígenas e afins, nem publicam os nomes dos responsáveis. E como em muitas outras situações de agressões e violência, o que apoiadores das vítimas fazem é emitir notas de repúdio que não servem para nada. É um jeito de lavar as mãos. Alguma vez uma nota de repúdio teve algum efeito? Me contem.

Alguns dos “nossos”, querendo parecer mais radicais terminam suas notas de repúdio inúteis com a expressão “Não passarão!”, ou “No passarán!”, de acordo com o original espanhol, palavra de ordem pra lá de infeliz, usada pela primeira vez na Primeira Guerra Mundial, mas celebrizada por Dolores Ibárruri, conhecida como “A Passionária”, durante a Guerra Civil Espanhola, ocorrida de 1936 a 1939. Foi o lema lançado por ela na Batalha de Madri, contra os direitistas do general Francisco Franco. Mas eles atropelaram os republicanos em Madri e Franco ainda ironizou com outra expressão: “Hemos pasado”, quer dizer, “Passamos”. E de lá pra cá, certos grupos de esquerda usam a desgraçada da expressão direto, como se fossem resistir bravamente à direita, e toda vez que gritam essa palavra de ordem, a direita passa, atropelando tudo. É uma palavra de ordem, repito, pra lá de infeliz. Se estou numa manifestação qualquer e alguém pega o microfone e grita “Não passarão!”, querendo se mostrar revolucionário, caio fora, sabendo que vão passar sim, e ferrar a gente. E passaram a usar também nas tais “notas de repúdio” inúteis.

Gostaria que para certas coisas houvesse uma justiça sumária. Sei que não é possível, mas que pelo menos os governos ditos “de esquerda” tomassem atitudes pra valer. No caso do ataque ocorrido domingo contra os Guarani-Kayowá, segundo informações que recebi pelas mídias sociais (portanto, não cem por cento confiáveis), tinha agentes da Força Nacional lá, mas eles fugiram dos atacantes. Certo, não acho que devam morrer lutando desproporcionalmente contra uma força maior. Mas não lhes deram reforço?

Às vezes o que falta é decisão, simplesmente. Como, numa situação muito menos (mas muito mesmo) grave que o que contei do muro da Cohab, é preciso tomar decisão. Rapidamente e sem burocracia. E, claro, contra quem está errado. Será que verei isso?

hudsonlacerda@diasporabr.com.br

O que falei do Boldrin... - Por Mouzar Benedito

Fui à gravação do programa dele numa segunda-feira e em seguida o entrevistei no camarim. Uns dias depois da publicação, Boldrin me ligou agradecendo e me encheu de vaidade, falando que a sua produtora lhe disse que foi a melhor matéria feita sobre ele

Por #MouzarBenedito

Escrito en OPINIÃO el 12/11/2022 · 20:56 hs

Acho que foi em 2008, não me lembro bem, a revista Brasileiros me pediu uma matéria sobre #RolandoBoldrin. Fui à gravação do programa dele numa segunda-feira e em seguida o entrevistei no camarim. Uns dias depois da publicação, Boldrin me ligou agradecendo e me encheu de vaidade, falando que a sua produtora lhe disse que foi a melhor matéria feita sobre ele. Podia ser só uma cortesia dele, um afago, mas mesmo assim gostei.

Peço licença ao Hélio Campos, que era proprietário da revista para reproduzir o texto aqui no blog da Fórum.

É uma homenagem ao Boldrin, que acho que o próprio Hélio e jornalistas que passaram pela Brasileiros compartilham.

Aí vai...


Caipira! Morador do mato, na língua tupi. Mas tem também o sentido de tímido. Mas um dos expoentes da cultura caipira não é uma coisa nem outra: Rolando Boldrin, conhecido de todos por seus programas de valorização da cultura popular brasileira, grande declamador de poemas caipiras e contador de causos, não tem nada de tímido e nunca morou no mato.

Certo, nasceu numa cidade pequena, São Joaquim da Barra, no estado de São Paulo, hoje não tão pequena assim.

Descendente de italianos vindos da cidade de Pádua para o interior paulista, Boldrin é um dos doze filhos de um mecânico e uma dona de casa. O pai, Amadeu, era materialista numa época e numa região que isso parecia coisa do capeta, mas ao mesmo tempo era um dos maiores amigos do padre da cidade. Também descendente de italianos, o padre encontrava em Amadeu uma pessoa com quem podia conversar sem os rapapés dos que lhe puxavam o saco. E via no mecânico que dizia não poder confiar em Deus, mas apenas nele mesmo para sustentar a família, virtudes que talvez poucos dos freqüentadores da igreja tivessem. Era honesto, trabalhador. “Ê, Amedeu [sic], você não é ruim como pensa”, falava o padre. Um materialista que não impôs sua crença aos filhos: Rolando mesmo é espiritualista.

Durante um tempo, desde quando Rolando Boldrin tinha dois anos, a família morou fora de São Joaquim. Foi para Guaíra, mas voltou para sua cidade oito anos depois. Apesar de ter saído cedo de lá, aos 16 anos de idade, quando tentou pela primeira vez morar em São Paulo, a capita, corruptela de capital para quem queria demonstrar intimidade com a Paulicéia, São Joaquim continua sendo a cidade do coração de Boldrin, hoje com 70 anos. “Na minha cabeça, nunca saí de lá”, diz emocionado. Lá, ele fez todos os seus estudos: cursou até a terceiro série do curso primário, mas esse pouco tempo de escola não impediu que se tornasse um dos grandes conhecedores da cultura brasileira, um intelectual autodidata. E popular.

Isso se deve muito à sua vocação para os palcos: “Eu sou ator, e o ator tem por natureza um instinto de observação muito grande. Desde garoto eu observo muito as ações, os tipos humanos. Sempre amei esse jeito do nosso povo, o jeito do brasileiro ser, por isso conto histórias de tipos humanos brasileiros”. E essa capacidade de observação torna-se mais completa numa cidade pequena: “O juiz conhece o leiteiro, o leiteiro conhece o delegado, então tem essa convivência”.

Além disso, apesar de ser da cidade, lá ele teve contato com caipiras legítimos, e percebeu uma coisa que reflete na música caipira: “O artista caipira sempre vai pro lado do emocional, de valorizar o seu bem. Ele valoriza um cachorro, ele passa o amor que tem por um cão, passa o amor que tem por uma eguyinha, passa o amor que tem pelo lugar em que mora, um ranchinho; passa o amor que tem por um corguinho que passa no fundo, um pé de ipê, um pé de manga, a cerca de bambu...”.

Emoção, aliás, é uma marca de Boldrin. Seus programas de TV, todos reafirmando sua condição de brasileiro e seu amor ao país – Som Brasil na Globo, Empório Brasileiro na Bandeirantes, Empório Brasil no SBT, Estação Brasil na Gazeta e agora Senhor Brasil, na TV Cultura – sempre tiveram e têm momentos carregados de sentimento, seja nas declamações dele e de outros poetas, seja nos causos divertidos ou nas músicas.

Menino atrevido

Boy. Este era o apelido de Boldrin quando criança. Estranho para alguém tão brasileiro. Mas nem tanto. Na década de 1930, o gênero bangue-bangue estava no auge no cinema, e seu pai era um grande apreciador dos filmes estrelados por Buck Jones, Tom Mix e Hopalong Cassidy e às vezes dava apelido aos filhos inspirados nesses personagens ou nos atores. Rolando, desde criança, tinha os cabelos brancos como os de William Boyd, que fazia o papel de Hopalong Cassidy. Daí, recebeu o inevitável apelido Boyd, que acabou virando Boy.

Moleque – em termos, porque sempre foi pacífico, alegre, nunca brigava: “Sempre fui dócil, amoroso” – mal saído das fraldas, Boldrin já mostrava a que vinha. “Posso jurar”, garante, “que aos seis ou sete anos já gostava de curtir e adaptava músicas brasileiras em geral”. E ele nem tinha rádio em casa para ouvir a Mayrink Veiga, a Nacional ou a Tamoio, todas do Rio de Janeiro. “Tudo era no Rio. A Meca do rádio e da música era o Rio”, lembra-se. O Brasil todo ouvia em ondas curtas as rádios do Rio. Mas Boldrin, sem rádio, ouvia músicas nos circos ou através de alto-falantes e fazia adaptações. Gostava de adaptar as músicas de Catulo da Paixão Cearense, autor do clássico caipira Luar do Sertão.

O pai gostava, levava o menino para cantar na oficina, onde ele era aplaudido pelos mecânicos que davam um tempo no conserto dos fordinhos 28 ou 29 para ouvir o menino. Aos 7 anos de idade, Boy ganhou sua primeira violinha, que durou pouco, não deu tempo nem para aprender a dedilhar o instrumento: “Esqueci na chuva, debaixo de uma goiabeira, e estragou tudo”. Mas logo ele ganhou outra, cuidou direito, e um amigo o ensinou a tocar. O resultado foi a formação da dupla Boy e Formiga, com o irmão Leili que, por ter nascido muito pequeno não ganhou apelido de ator de faroeste, era o Formiga. Seu Amadeu era mais que um estímulo, um verdadeiro empresário e propagandista empolgado dos filhos. Levava os meninos para se apresentar em quermesses, qualquer lugar que pudesse colocá-los em cima de uma mesa que servisse de palco. A mãe já tinha afazeres demais com tantos filhos para cuidar, não chegava a estimular a veia artística dos filhos, mas também não atrapalhava.

Já em São Joaquim de novo, a dupla começou a se apresentar na rádio local, com patrocínio e tudo. O show era num auditório e antes da dupla se apresentar havia a projeção de um filme. O meninote era exigente, impunha seu gosto. Como ele e o irmão lotavam o auditório e ele era o principal artista da dupla, exigia que o filme que antecipava sua apresentação fosse sempre nacional. E era atendido!

Eles chegaram a se apresentar também em circos, mas o que Boy gostava mesmo dos circos não era a música, era a peça que sempre havia no fim do espetáculo. Quase todos os circos que iam de cidade em cidade no interior eram “circos-teatros”. Nem só de trapezistas, palhaços, equilibristas, malabaristas e mágicos consistiam os espetáculos circenses: o fim era sempre com uma peça, mas ninguém chamava de peça: era um drama ou uma comédia. Boldrin assistia a tudo fascinado e sonhava se apresentar nos palcos. Via-se no palco fazendo O mundo não me quis, Miguel Strogoff, o Ébrio, Paixão de Cristo, E o céu uniu dois corações...

Sozinho na capital

Boldrin sonhava. Sabia que ia ser artista e seu destino era São Paulo, a capital. Com 16 anos resolveu seguir seu instinto. O irmão, Formiga não queria mais saber de cantar e ele mesmo também não via mais seu futuro como cantor, queria ser era ator mesmo, “artista de verdade”. Seu pai o estimulou mais uma vez: “Tem só duas profissões que dão dinheiro neste mundo: jogador de futebol e artista. Você não tem queda pra jogar bola, mas tem jeito para artista... isso dá dinheiro”.

Mas as coisas não foram como ele esperava. Passou quatro meses dormindo na rua, passando dificuldade, e resolveu voltar para São Joaquim da Barra. Lá, não deu o braço a torcer. Quando perguntavam sobre seu sumiço por esse tempo, falava que estava em São Paulo, contava que andou de bonde, não falava nada das dificuldades.

Dois anos depois, estava em São Paulo de novo. Ou melhor, em Quitaúna, no atual município de Osasco, onde serviu o exército em 1954, um ano conturbado, marcado pelo suicídio do presidente Getúlio Vargas. Lá, conheceu um aspirante que mais tarde viraria um dos principais líderes da guerrilha contra a ditadura, Carlos Lamarca.

Terminado o serviço militar, considerou cumprida sua obrigação com a pátria, voltou por pouco tempo para São Joaquim da Barra e logo depois estava de novo em São Paulo, para ficar. São Joaquim, no entanto, não seria apenas um retrato na parede. Como já foi dito, mesmo estando fora há mais de 50 anos, ele nunca saiu de lá.

Quando chegou de novo na capita, fez teste na TV Tupi e passou, conseguiu trabalho, mas não dinheiro. A vida continuou dura, mas ele não desistiu. Morando num quartinho da casa da humorista Maria Vidal, chegou a comer sobras dos colegas. Os frutos começaram a aparecer, ele passou por emissoras de rádio e TV e enfim, em 1966, estreou no teatro no famoso grupo Oficina, com um papel importante numa peça de Maximo Gorki, Os inimigos. Depois foi para outro grupo festejado e militante, o Arena, participando de peças como Feira Paulista de Opinião, em 1968, uma época em que o CCC (Comando de Caça aos Comunistas) invadia teatros e espancava artistas. E começou também a trabalhar na televisão, como ator. Fez 25 novelas, ao lado de grandes atores e atrizes. A última delas foi Os imigrantes, de Benedito Ruy Barbosa, na TV Bandeirantes. Fez também filmes, como Doramundo.

Multiartista

Nesse período em que parecia ter-se tornado “apenas” ator, mostrou que não tinha esquecido a música. Em 1968, por exemplo, quando Caetano Veloso levou uma grande vaia no Festival Internacional da Canção, tentando cantar É proibido proibir, e Geraldo Vandré levou o público ao delírio com Pra não dizer que não falei de flores, Rolando Boldrin estava entre os finalistas da fase paulista do festival, muito aplaudido com Onde anda Iolanda, uma música elogiada até por Chico Buarque.

A decisão de largar as televonelas deveu-se à possibilidade da realização de um sonho, criar um programa musical diferente, o Som Brasil, na TV Globo, em 1981. Um programa que não tivesse só samba, que se impunha sobre os outros gêneros brasileiros. Rolando Boldrin queria música gaúcha, nordestina, caipira, de tudo. E com uma inovação: a contação de causos. Isso existia no rádio, mas não na televisão. Ele foi pioneiro, levou o causo – com u no meio mesmo – para a TV.

Depois de três anos, cansou do programa, que não tinha roteiro, exigia muito dele. Mas a mania de mostrar o Brasil aos brasileiros continuou – seu lema é “vamos tirar o Brasil da gaveta – e foram-se sucedendo novos programas semelhantes nos vários canais de televisão de São Paulo. Na TV Cultura, onde seu programa já tem dois anos, as características são as mesmas de sempre: nada de roteiro, de coisa pré-traçada. Quem vai à gravação de Senhor Brasil, nas noites de segundas-feiras, se surpreende ao ver que nada foi predeterminado. Antes do início, a produtora Patrícia Maia explica ao público como funcionará tudo, ao mesmo tempo que mostra peças do cenário, composto de objetos da cultura brasileira produzidos por pessoas que participam de movimentos sociais. Ao lado de muitas peças de artesanato de barro, redes, pássaros de madeira (inclusive um em que o próprio Boldrin pintou a bandeira brasileira e aparece na abertura do programa), há coisas como tapetes feitos por um grupo de caminhoneiras aposentadas.

Nas paredes retratos e pinturas da grande variedade de artistas homenageados ou presentes nos programas, como Elis Regina, duplas caipiras, Adoniran Barbosa, Aurora e Carmem Miranda, Ary Barroso, Lupicínio Rodrigues e muitos artistas atuais, como Tom Zé.

No seu programa, que dirige e apresenta, muitas vezes ele abre declamando poesias caboclas, ele canta composições suas e de outros, conta causos, toca viola e violão. Como existe hoje o profissional “multimídia”, ele poderia ser chamado de profissional “multiarte”. Mas não se considera poeta, compositor, cantor nem violeiro. E nem escritor, apesar de já ter escrito livros e de publicar colaborações em revistas. É “apenas” compositor.

É que como compositor, por exemplo, ele tem como parâmetros os expoentes: “Não sou nenhum Chico Buarque, nenhum Noel Rosa”. Mas já compôs músicas belíssimas. “Fui feliz em algumas obras que fiz, que saíram bonitas, sem falsa modéstia. O tema do meu programa, por exemplo, é meu. Eu acho bonito.”

Como violeiro e violonista que diz não ser também, Boldrin é capaz de tocar no violão uma das músicas mais difíceis feitas para esse instrumento, Abismo de Rosas, que muitos consideram um teste determinante para reconhecer um grande violonista. Como cantor... bom. “Eu não sou. Sou cantadô”, ele se autodefine, com pronúncia caipira. Enfim, essa modéstia toda tem algo a ver com o lado da timidez do caipira, não é?

Poderíamos completar: cantadô, decramadô, violero, apresentadô do Brasil. O Sinhô Brasil!

#RolandoBoldrin #cultura #caipira #Brasil #música #arte #história #cantadô #violeiro

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Qualquer dupla mixuruca tem jatinho, cobra uma fortuna por show. E o dinheiro público custeia isso tudo.

“Não é Lei Rouanet”, se apressam em dizer. Mas vá ver quem paga

Chitãozinho e Xororó na época do circo e Gusttavo Lima na era dos jatinhos.

Por #MouzarBenedito

Escrito en OPINIÃO el 2/6/2022 · 14:07 hs

Eu hoje vou chover no molhado: serei mais um a comentar os cachês milionários de artistas sertanejo-bregas que fingem não receber dinheiro público. Mas vou fazer isso contando uns causos curtos.

Começo pelo contrário: um tempo que duplas caipiras legítimas se apresentavam em circos. Na minha terra mesmo, Nova Resende (MG), de vez em quando chegava um circo que levava alguma dupla para cantar nele. Dupla consagrada, relativamente famosas, era assim o pagamento: 50% da bilheteria. Em dinheiro atual, uma entrada deveria custar uns R$ 20,00. Depois das apresentações normais do circo (palhaço, trapezista, malabarista, comédia ou drama teatral - quando ia ter show, esta parte teatral ficava fora) a dupla se apresentava. Quantas pessoas cabiam no circo? Na minha memória, no máximo umas duzentas. Ou seja, a arrecadação seria de no máximo R$ 4 mil - R$ 2 mil para o circo e outro tanto para a dupla, quer dizer, R$ 1 mil para cada um.

Parece pouco? Pois acho que até exagerei, porque as duplas viajavam de ônibus e se hospedavam na casa de algum fã. Não tinham dinheiro nem para comprar um carro.

Lá por 1990, já se iniciava com Chitãozinho e Xororó uma nova fase que eu achava ruim mas piorou muito, desaguou no atual “sertanejo universitário”.

Faço um parêntese aqui: um amigo de Belo Horizonte me contou que um menino filho de uma amiga dele perguntou à mãe: “Esses universitários não se formam nunca? Não aguento mais ouvir esse pessoal”.

Volto à história. Nessa época, surgiu uma revista chamada Som Sertanejo e me chamaram para colaborar nela. Escreveria causos, matérias grandes sobre coisas da cultura brasileira (cachaça, fumo de corda, rede de dormir..) e entrevistas com artistas da área. Mas com uma condição: entrevistar essas duplas, não! Só entrevistaria gente que eu achava que merecia. Assim, entrevistei Inezita Barroso, Rolando Boldrin e a dupla Tonico e Tinoco, que, se não me engano, completava 50 anos de carreira. Milhares e milhares de shows, e moravam em apartamentos simples no bairro da Moóca, em São Paulo.

Não eram pobres, mas também não eram milionários, numa época em que duplas bem ruinzinhas já cobravam uma boa grana por show e tinham ônibus, fazendas...

Agora vemos isso: qualquer dupla mixuruca tem jatinho, cobra uma fortuna por show. E o dinheiro público custeia isso tudo. “Não é Lei Rouanet”, se apressam em dizer. Mas vá ver quem paga.

Um único artista cobrar R$ 1,2 milhão por show, mais despesas de hospedagens no melhor hotel da região e um monte de mordomias?! Dinheiro público... O grandalhão de “Coração de Papel”, Sérgio Reis, diz que é a prefeitura que paga, não dinheiro público. E o dinheiro da prefeitura não é público? Se não for de imposto direto a ela, é dinheiro dos cofres federais (até o BNDES!). Vá ver se as cidades que pagam isso aos “sertanejos” têm uma biblioteca pública, por exemplo. R$ 1,2 milhão dá pra montar uma de ótima qualidade. Ou pagar um salário melhor aos professores, ou fazer obras úteis que as prefeituras não fazem por “não terem dinheiro”.

Livro, só como justificativa para um show

Agora entro nos causos que queria contar, é sobre como gasta-se dinheiro a rodo com esse pessoal enquanto a literatura, se depender dos gastões, morre à míngua.

Uma das minhas irmãs fez o curso de jornalismo na Cásper Líbero e se formou há quase vinte anos. Ela e uma colega fizeram como Trabalho de Conclusão de Curso um livro sobre o grande compositor caipira João Pacífico. Ficou muito bom. Imprimiram só uns poucos exemplares, para a banca, para elas mesmas e um pra mim. Li e achei que devia publicar, mas alguma editora se interessaria?

Elas decidiram ir a Cordeirópolis (SP) terra do compositor e pedir apoio à prefeitura. O prefeito marcou encontro com elas num restaurante, à noite. Lá, folheou o livro e se mostrou impressionado. Mostrou aos frequentadores do restaurante e logo vários queriam comprar o livro. A impressão de uma tiragem razoável custaria na época R$ 5 mil ou pouco mais. Era um livro que eu imaginava que a prefeitura iria adotar nas suas escolas. A resposta do prefeito: não topava bancar a publicação, mas se elas publicassem, ele faria um grande show de lançamento com muitas duplas cantando músicas do João Pacífico. Quer dizer, gastar R$ 5 mil com a publicação do livro, não dava. Mas gastar umas dez ou vinte vezes esse valor para fazer um show de lançamento do livro, tudo bem.

Pagar pra trabalhar?

A cidade de Olímpia, no estado de São Paulo, promove em agosto, todos os anos (acho que não na pandemia), a maior festa de folclore do Brasil. É uma festa boa, leva muita gente para festejar a cultura popular brasileira. Acho que os cachês que pagam aos artistas não é alto.

Um ano, um dos organizadores me convidou para fazer uma palestra sobre cultura popular, entrando no assunto dos nossos mitos de origem indígena, como o Saci, a Iara, o Curupira etc. Tenho alguns livros sobre isso.

Topei, claro. Perguntei sobre a viagem e a hospedagem. Eu topava ir de ônibus, gastaria pouco. E não exigiria nenhum hotel estrelado. Ele me falou que podia me hospedar na casa dele, porém a viagem seria por minha conta. Mas eu teria o direito de vender meus livros depois da palestra. Respondi que a venda de livros nesses eventos é mínima, talvez vendesse uns quatro ou cinco exemplares, sem contar que geralmente pedem para deixar de graça livros para a biblioteca local. Acabaria pagando para fazer a palestra. Ele não gostou, e não fui. Enfim, é isso: para os grupos musicais tinha cachê, essas coisas. Não muito, mas tinha. Eu só queria pagamento da despesa que teria.

Pagar pra trabalhar, de novo!

Sempre que ia à minha terra, topava ir ao colégio conversar com os estudantes, e deixava alguns livros para a biblioteca.

Depois de aposentado, continuei fazendo isso, mas com o passar dos anos minha grana foi minguando e reduzi minhas viagens. E essas viagens eram quase sempre curtas, em finais de semana com feriadão. Numa dessas vezes, há uns oito ou dez anos, estava tendo uma festa lá, e soube que levaram uma dupla sertaneja que eu não conhecia, o que não é novidade, pois só sei o nome de algumas muito faladas, não ouço nenhuma. Cachê para a dupla: R$ 180 mil.

Tempos depois fiz minha última viagem pra lá, praticamente zerado de dinheiro. Uma professora perguntou se eu topava ir uns quinze dias depois fazer uma palestra numa escola de alfabetização de adultos. Falei que topava sim, e levaria uns livros de causos para o pessoal, de graça. Mas aquela viagem que fiz era com a última grana que podia gastar. Só poderia ir se a prefeitura pagasse a passagem de ônibus, ida e volta, e duas noites num hotel que não era caro. Refeições, eu mesmo pagava. Fiquei sendo considerado um mercenário.

Quanto vale o show?

Termino com uma historinha que não envolve dinheiro público, mas a mentalidade de certas pessoas.

Numa festa do Saci, em São Luiz do Paraitinga, lancei o livro Anuário do Saci. Uma amiga cuidou da venda, ao meu lado. Um rapaz pegou um livro, folheou, sorriu, folheou mais, riu... perguntou quanto custava, e quando soube que custava R$ 24,00 fez cara de surpreso. Eu via e ouvia tudo, achei que o rapaz não tinha “tanto” dinheiro e ia falar para a minha amiga vender pelo preço que ele quisesse, dez reais, cinco, o que fosse, porque parecia que ele gostou muito e não tinha dinheiro. Mas ele saiu rapidamente e não deu tempo.

No dia seguinte, fui tomar um café num bar, e vi um cartaz dizendo que ali se vendia ingressos para a apresentação de uma dupla sertaneja bem mequetrefe. Preço do ingresso: R$ 60,00. Aí entrou o mesmo rapaz e comprou dois, pra levar a namorada. R$ 120,00 reais por um show de uma hora e meia. Não topou gastar R$ 24,00 com um livro que poderia ler e reler por muitos dias, emprestar à namorada...

Difícil...