Juridicamente, há genocídio em Gaza? Uma resposta a José Rodrigo Rodriguez – Por Maira Pinheiro
Settle down, Palestine
Why are you so upset?
Lock her in the basement
Build a higher wall
She reminds me of rotting flesh
And ruins my sea view
But Palestine sees you anyway
Enduring and steadfast
Palestine flies over, climbs under
and moves through you
Eternal, ineffable, key in hand, ready to return
(Amanda Gelender, 2024)
No último domingo, 20 de janeiro de 2024, foi publicado no portal de notícias jurídicas #JOTA, artigo no qual o professor José Rodrigo Rodriguez afirma entender pela não configuração de #genocídio nas ações do estado de #israel contra o povo palestino, especialmente na operação militar em curso em #Gaza.
Optei por publicar minha resposta aqui na #RevistaFórum, em vez de no próprio portal, porque me recuso a eufemizar minha linguagem enquanto um genocídio está acontecendo e neste espaço sei que tenho a liberdade de dar às coisas o nome que elas de fato têm. Espero que o autor do artigo leia e que os aportes que trago aqui sirvam para despertar nele reflexões epistemológicas urgentes na academia brasileira.
Como outsider da torre de marfim, contudo, talvez minhas ideias sejam consideradas “pouco sóbrias”. Digo isto porque o artigo objeto desta crítica basicamente afirma que sobriedade e racionalidade levam à conclusão pela não configuração de um genocídio em Gaza, e que uma análise correta do problema deveria ser “jurídica” em vez de “política”.
Entendo que o professor está equivocado em várias de suas considerações, e que a forma com que ele constrói seus argumentos está em dissonância com a natureza do procedimento atualmente em tramitação na Corte Internacional de Justiça, bem como os standards probatórios vigentes para o provimento dos pedidos de medidas provisionais, já que o julgamento de mérito está sujeito a instrução e levará anos para ser concluído.
Como foi marcada para a próxima sexta-feira, 26 de janeiro de 2024, a sessão em que será proferida a decisão da Corte acerca das medidas provisionais requeridas pela África do Sul, o tema aqui discutido torna-se ainda mais premente.
Ao contrário do que sustenta o professor José Rodrigo Rodriguez, entendo que os elementos constitutivos do tipo genocídio foram demonstrados de maneira suficiente pela África do Sul em sua aplicação, notadamente levando em consideração que para a imposição de medidas provisionais, o standard probatório é de demonstração de plausibilidade e probabilidade.
A estrutura da aplicação da África do Sul é, em si, extremamente interessante, vez que se inicia com uma importante contextualização histórica da ocupação colonial do território palestino pelo estado de israel, estabelecendo que os fatos atualmente em curso são uma continuidade da Nakba - palavra em árabe que significa “catástrofe” e que denomina a expulsão violenta de mais de 750.000 palestinos de suas terras em 1948; e da ocupação militar dos territórios palestinos remanescentes a partir de 1967. Nessa introdução, também são apresentados dados importantes acerca das condições de vida em Gaza antes do início do atual conflito. O cientista político norte-americano e filho de sobreviventes do Holocausto, Norman Finkelstein, um dos principais estudiosos sobre Gaza na atualidade, caracteriza há anos o enclave como um “campo de concentração”.
Após essa contundente introdução, a parte requerente descreve de maneira extremamente completa e detalhada, cada um dos elementos nucleares do art. II da Convenção do Genocídio, com base em imenso acervo probatório, já que estamos, pela primeira vez na História, assistindo um genocídio em tempo real, graças ao trabalho verdadeiramente heroico que vem sendo realizado pelos jornalistas de Gaza.
Um dos aspectos mais marcantes da representação da África do Sul reside no fato de a caracterização das condutas previstas no art. II da Convenção vir de posicionamentos das principais agências humanitárias e de direitos humanos do sistema ONU (Alto Comissariado de Direitos Humanos, Comitê de Eliminação de Desigualdade Racial, Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários, Relatoria Especial da ONU sobre Direitos Humanos na Palestina, Organização Mundial da Saúde, UNICEF, World Food Programme, UNRWA).
A inteligência dessa escolha tática é evidente: caso a mais alta Corte do sistema ONU decida pelo indeferimento das pretensões formuladas pela África do Sul, ela estará indo contra as conclusões de suas próprias agências.
A demonstração do dolo específico de genocídio vem a partir de uma curadoria de falas verdadeiramente atrozes, que deixam nítido que a intenção de provocar a destruição do povo palestino em Gaza se faz presente em todos os níveis do estado de israel, e que as falas proferidas pelo alto escalão são reverberadas pelos militares que atuam na ponta e por membros da sociedade civil.
Essas falas vêm sendo objeto de alertas e advertências por parte de órgãos do sistema ONU, especificamente quanto a seu caráter genocida, desde o início do massacre. As centenas de falas genocidas são enunciação clara e coerente de um projeto de país que perpassa todos os níveis do governo, encontra adesão na sociedade civil e está sendo concretamente implementado diante dos olhos do mundo. E não sejamos hipócritas, o direito de dizer atrocidades e depois usar a desculpa da bravata é branco. Líderes racializados jamais teriam o privilégio de ter sua “periculosidade” relativizada caso verbalizassem a intenção de destruir populações ocidentais inteiras.
Nesta etapa de cognição sumária do rito da Corte Internacional de Justiça, caberá ao colegiado julgar, em grosseira analogia, o fumus boni iuris da ocorrência de genocídio, para fins de fixação da competência da corte para a imposição de medidas provisionais. Em termos leigos, isso significa basicamente que eles vão julgar se o cenário apresentado pela África do Sul “se parece o suficiente” com o crime de genocídio para justificar a adoção de medidas emergenciais. Os parâmetros que o professor traz em seu artigo como necessários para a caracterização da intenção genocida não se aplicam a esta etapa processual.
E ainda assim, caso seja instado a fazê-lo, o professor José Rodrigo Rodriguez será incapaz de apontar um só exemplo de medida que tenha sido adotada pelo legislativo ou pelo judiciário israelense voltada a limitar a ação do exército sobre civis em Gaza, a limitar o emprego de munições proibidas para áreas densamente povoadas, execuções sumárias de civis, inclusive mulheres e crianças, a restrição do acesso a água e comida, a catástrofe sanitária que já começou a matar as pessoas de diarreia e hepatite.
A não ser, é claro, que ao assistir à sustentação oral da defesa de israel na CIJ ele tenha se convencido de algo que foi dito ali.
A defesa do estado de israel, em atuação de qualidade jurídica bastante inferior, acusou a África do Sul de atuar como o braço jurídico do Hamas, afirmou que todas as atrocidades e horrores cometidos contra a população de Gaza são de responsabilidade do Hamas, negou todas as acusações e alegou adotar medidas para mitigar os danos causados a civis como forma de justificar sua atuação em Gaza. O jovem influenciador palestino-americano @absorbeyt fez uma contagem da quantidade de vezes que a palavra “Hamas” foi dita pela equipe jurídica de israel, chegando a impressionantes 137 menções, praticamente uma por minuto.
Uma das diferenças mais marcantes entre as duas defesas reside nos elementos de prova suscitados para fundamentar as respectivas teses.
Enquanto a África do Sul se apoia em enorme acervo de provas oriundas de fontes abertas e nos relatórios e manifestações de órgãos da ONU e de outras entidades internacionais que atuam no território e verificam e corroboram os fatos narrados pela imprensa local, israel se reporta exclusivamente a suas próprias fontes e documentos.
Essas fontes e documentos, em sua imensa maioria, não foram objeto de nenhum tipo de verificação ou apuração independente, vez que israel exerce total censura e controle sobre os poucos profissionais da imprensa a quem é permitida a entrada em Gaza. Esses jornalistas somente podem acessar o enclave acompanhados dos soldados das forças de ocupação e todo e qualquer material a ser publicado precisa ser revisado pelo governo israelense. Ou seja, na prática não se trata de cobertura jornalística e sim de assessoria de imprensa.
Ao contrário do que afirma o professor, não há proteção e defesa da população de Gaza pelos três poderes do estado de israel porque o estado de israel, conforme o entendimento dos mais relevantes estudiosos anticoloniais e dos direitos humanos, bem como conforme detalhado relatório da Anistia Internacional lançado em 2021, é um estado de apartheid. O que vivem os palestinos da Cisjordânia e Gaza não é uma democracia. Se metade do povo que vive em um território está sob o jugo de uma ocupação militar, está sujeito a um sistema de justiça criminal paralelo em decorrência de sua etnia, está proibido de circular livremente pelo território, exercer o direito à propriedade e à liberdade de expressão, e está sujeito a hipervigilância e à morte nas mãos do estado, não há que se falar tampouco em “governo democraticamente eleito”.
Uma decisão da Corte Internacional de Justiça no caso de israel e Gaza que afirme que prima facie é inviável um juízo de possibilidade e probabilidade de genocídio que enseje medidas provisionais com vistas a prevenir um genocídio entraria em contradição direta com todas as últimas decisões da Corte em casos análogos.
O impacto de uma decisão favorável à África do Sul será muito mais político e simbólico do que efetivamente jurídico, vez que a execução de quaisquer medidas impostas pela Corte precisará passar pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, onde israel sempre pode contar com o generoso veto norte-americano.
Então vejam só: tempos aqui um artigo de um professor de direito que diz, basicamente, que dizer que é genocídio é excesso de emoção, porque genocídio de verdade é o nazismo; e que o posicionamento do governo brasileiro não é “sóbrio” e é ruim para uma tradição de neutralidade na diplomacia. Para fundamentar seu ponto, ele faz afirmações sobre a ausência de intenção genocida que não correspondem aos parâmetros que a Corte Internacional de Justiça nem tampouco à realidade das relações entre israel e palestina.
O resultado prático do que ele está sustentando em seu artigo é um julgamento favorável a israel na Corte Internacional de Justiça. Além de tecnicamente errado, esse resultado seria catastrófico, pois significaria uma verdadeira carta branca para israel elevar o tom da violência e brutalidade ainda mais. Em relação à diplomacia brasileira, o professor está se opondo a uma articulação do sul global contra violações atrozes de direitos humanos.
Ainda assim, é preciso que israel seja isolado, que se consolide cada vez mais perante os olhos do mundo como o etnoestado pária que já deu o que tinha que dar e que já provocou estragos suficientes. Netanyahu está tentando arrastar o mundo para um conflito regional com potencialidades catastróficas de escalar para o nível global, pois sabe que as acusações de corrupção que ostenta seguem de pé, e que ele está fazendo hora extra do lado de fora das grades. Ele sabe muito bem que no dia 1 pós-guerra a casa cairá para ele e por isso se cerca dos mais fanatizados e perversos e repete chavões como “até a vitória” enquanto mata os próprios reféns.
É um imperativo civilizatório de nossos tempos que israel pare de ser tratado pelos países colonizadores do mundo como o filho malcriado mimado por pais ausentes que se sentem culpados. E que o Sul Global se una em torno de uma ordem mundial multipolar e sem imperialismo. É desse lado que a diplomacia brasileira tem que estar.
Por isso (e por uma série de outros motivos) a diferenciação entre direito e política que o professor José Rodrigo Rodriguez busca apresentar como virtuosa tem lugar apenas nas pretensões universalizantes da epistemologia branca ocidental. No mundo real da colonização voraz e selvagem, a Corte Internacional de Justiça, assim como qualquer outro organismo do sistema ONU atualmente, pode ser uma ferramenta taticamente relevante para proteger um povo de um massacre quando todas as outras estão falhando.
Aos genocidas, a #justiça.
Palestina Livre do Rio ao Mar!
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