Mais Médicos: Cuba envia profissionais para preencher vagas ociosas no Brasil, e classe médica se revolta
Graças ao programa, mais de 700 cidades brasileiras receberam um médico pela primeira vez na história
#EstevamSilva
São Paulo
27 de agosto de 2024,
às 14:10
Há 11 anos, em 27 de agosto de 2013, médicos cubanos eram hostilizados por seus colegas brasileiros durante um evento na Escola de Saúde Pública do Ceará, em Fortaleza. Os profissionais cubanos vieram ao Brasil para atuar no programa “ #MaisMédicos ”. Eles foram forçados a passar por um “corredor polonês” enquanto eram vaiados e insultados pelos médicos brasileiros com termos como “escravos” e “açougueiros” e orientados a “voltar para a senzala”.
O programa “Mais Médicos” foi lançado em julho de 2013, durante o primeiro mandato de #DilmaRousseff, visando suprir a carência de médicos nos municípios do interior, em comunidades isoladas e nas periferias das grandes cidades. O programa consistia na contratação de médicos estrangeiros para ocupar vagas tradicionalmente rejeitadas pela classe médica brasileira.
Embora o Brasil possuísse à época uma taxa de dois médicos para cada mil habitantes — quase o dobro do mínimo recomendado pela Organização Mundial da #Saúde (OMS) — a distribuição geográfica desses profissionais era muito desigual, com grande concentração de nos setores privados e nas áreas bem urbanizadas do Centro-Sul do país. Ao mesmo tempo, estados do Norte e do Nordeste, bairros periféricos, vilarejos nos grotões mais afastados, comunidades quilombolas e distritos indígenas sofriam com escassez de médicos. Os profissionais costumavam recusar até mesmo vagas com o triplo da remuneração média nessas regiões.
Diante da resistência dos médicos brasileiros em clinicar em regiões negligenciadas, o governo federal criou em 2011 o Programa de Valorização dos Profissionais da Atenção Básica (Provab), com intuito de atrair médicos brasileiros recém-formados para esses locais em troca de uma bolsa de R$ 8 mil. Entretanto, somente 29% das 13 mil vagas foram preenchidas e a taxa de retenção dos profissionais era muito baixa. Como o déficit de médicos persistia, o governo federal resolveu lançar o “Mais Médicos”.
A princípio, o programa possuía em dois eixos: fixar temporariamente médicos brasileiros e estrangeiros no interior e nas periferias e ampliar a duração do curso de medicina das universidades federais em dois anos, período em que os formandos atuariam de forma compulsória no Sistema Único de Serviço ( #SUS ). Diante da avalanche de críticas das associações médicas, o governo recuou na proposta de serviço compulsório dos estudantes.
A princípio, o governo federal tentou novamente privilegiar a contratação de médicos brasileiros, que foram o público alvo das primeiras seleções. A resposta, entretanto, ficou muito aquém do esperado e apenas 6% das vagas foram preenchidas. O governo passou então a contratar em massa profissionais estrangeiros. Foram selecionados 18 mil médicos do exterior. A maioria (11 mil) eram cubanos, havendo ainda grandes contingentes de médicos portugueses, argentinos e espanhóis. Os profissionais estrangeiros receberam autorização profissional provisória — restrita à atenção básica nas regiões para onde fossem alocados — e passaram por uma avaliação de três semanas nas universidades brasileiras.
O Ministério da Saúde oferecia o custeio da passagem e uma bolsa de R$ 10 mil em troca de uma carga horária de 40 horas semanais, ao passo que os municípios se encarregavam de oferecer ajuda de custo para moradia e alimentação. Os profissionais cubanos, entretanto, possuíam um regime diferenciado de contratação, intermediado pela Organização Pan-Americana de Saúde e pela Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS), baseado na divisão do repasse entre o governo cubano (60%) e os profissionais (40%).
O programa enfrentou feroz oposição da classe médica, que reagiu com evidente corporativismo, tentando obter reserva de vagas que não pretendiam ocupar. Diversas manifestações, paralisações e greves de médicos e estudantes de medicina foram organizadas por todo o #Brasil. A Associação Médica Brasileira (AMB) e o Conselho Federal de #Medicina (CFM) entraram com ações no Supremo Tribunal Federal visando suspender o programa, sob alegação de que os profissionais estrangeiros estariam incorrendo em “prática ilegal da medicina”, por estarem atuando sem certificação do Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos, o Revalida.
Cinicamente, as associações médicas alegaram estar preocupadas com a qualidade da medicina ofertada pelos médicos estrangeiros aos cidadãos brasileiros que eles mesmos se recusavam a atender. Os médicos estrangeiros — sobretudo os cubanos — tornaram-se alvos de manifestações xenofóbicas, preconceituosas e abertamente racistas por médicos que os assediavam e insultavam nos desembarques em aeroportos ou em cerimônias públicas. O presidente do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais, João Batista Gomes Soares, chegou a orientar os médicos brasileiros a não socorrerem ou prestarem qualquer tipo de auxílio aos médicos estrangeiros.
Políticos como Aécio Neves, Carlos Sampaio e Jair Bolsonaro reforçaram as críticas ao programa, pondo em dúvida o profissionalismo e conhecimento dos médicos estrangeiros. Houve ainda intenso ativismo contra o programa no poder judiciário e o Ministério Público do Trabalho chegou a abrir investigação para apurar denúncia de que os médicos cubanos estariam sendo submetidos a “trabalho escravo” — mesmo que esses profissionais estivessem recebendo vencimentos quatro vezes superiores à renda média per capita dos brasileiros.
Igualmente virulenta foi a reação da imprensa, que alternou entre o reacionarismo disfarçado de preocupação cívica e o conspiracionismo lunático. Colunistas da revista Veja chegaram a afirmar que os médicos cubanos seriam, na verdade, espiões e guerrilheiros comunistas que visavam insuflar uma guerra civil no Brasil. A campanha de difamação do programa foi tão intensa que a própria população passou a enxergar a chegada de mais médicos como algo negativo. Em uma pesquisa divulgada pelo Datafolha em 2013, a maioria dos brasileiros se declarava estar em desacordo com o programa.
Apesar do clima de histeria, o “Mais Médicos” foi um sucesso e obrigou muitos dos críticos a revisarem suas opiniões. O médico Drauzio Varella, que em 2013 afirmara que o programa era uma “medida paliativa” que teria “impacto muito pequeno na saúde pública”, passou a opinar que o “Mais Médicos” era “o programa de interiorização de maior alcance e duração”. “Nunca um programa alcançou tantas pessoas em território nacional e durou tanto tempo”, afirmou Varella cinco anos depois. Ao todo, 4.058 municípios e 34 distritos indígenas foram atendidos, garantindo assistência médica a 63 milhões de brasileiros.
O “Mais Médicos” passou a responder por 48% das equipes médicas de atenção básica em cidades de até 10 mil habitantes e por 100% da assistência médica em mais de 1.100 municípios. Graças ao programa, mais de 700 cidades brasileiras receberam um médico pela primeira vez na história. O programa resultou no fortalecimento da atenção básica e primária, privilegiando sobretudo a população mais carente e as regiões mais pobres. A humanização do atendimento e a dedicação dos profissionais cubanos também encantou a população, em comparação com a frieza e o desinteresse de parte da classe médica brasileira. Uma pesquisa realizada pela UFMG em 2015 revelou que 94% dos usuários aprovavam o programa.
Após a confirmação da vitória de Jair Bolsonaro na eleição presidencial de 2018, o governo de Cuba optou por encerrar a parceria com o Ministério da Saúde, recolhendo seus profissionais. A atitude de Cuba ocorreu em resposta à agressividade de Bolsonaro, que atacou continuamente o país caribenho durante sua campanha, prometendo expulsar os médicos cubanos do país e suspender o pagamento dos serviços médicos ao governo cubano.
Com isso, o Brasil perdeu mais de 11 mil médicos distribuídos por quase 3 mil municípios. Em 2019, Bolsonaro extinguiu o “Mais Médicos”, substituindo-o pelo “Médicos pelo Brasil”. A oferta de profissionais, entretanto, não retornou aos patamares anteriores, resultando numa redução de 30% da oferta de médicos em relação à gestão Rousseff.
Bolsonaro também indicou Mayra Pinheiro, pediatra que participou dos protestos contra os médicos cubanos em Fortaleza, para gerenciar o “Médicos pelo Brasil” e ocupar o cargo de secretária de Gestão e Trabalho do Ministério da Saúde. Alcunhada “Capitã Cloroquina”, Mayra se destacou negativamente durante a pandemia de covid-19 por incentivar o “tratamento precoce”, a prescrição de cloroquina e a substituição dos testes para detecção da doença pelo uso de um aplicativo chamado TrateCov.
O programa “Mais Médicos” foi recriado por #Lula em julho de 2023. Na mesma ocasião, o presidente também instituiu a Estratégia Nacional de Formação de Especialistas para a Saúde, que prevê a ampliação da atenção primária no SUS. Desde então, o número de médicos atuando pelo programa dobrou, saltando de 12.843 em dezembro de 2022 para 24.894 em junho de 2024.