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Jamil Chade: Carta para Arthur do Val: a condição feminina na guerra e na paz

05/03/2022 05h30

Senhor deputado,

Confesso que não conhecia seu nome, e nem sua denominação de guerra. Mas os áudios indigestos que vazaram com seus comentários sobre a situação na Ucrânia me obrigaram a escrever aqui algumas linhas sobre o que eu vi em campos de refugiados e filas de pessoas desesperadas para escapar da guerra e da pobreza ao longo de duas décadas.

Não estou acusando o senhor e sua comitiva do que estará exposto abaixo. Mas considero que, sem entender essa dimensão do sofrimento humano, fica impossível justificar uma viagem como a que o senhor faz para ajudar a defender um povo.

Ao longo da história, a violência sexual é uma das armas de guerra mais recorrentes para desmoralizar uma sociedade. Ela não tem religião, nem raça. Ela destrói. Demonstra o poder sobre o destino não apenas das vidas, mas também dos corpos e almas.

Percorrendo campos de refugiados em três continentes, o que sempre mais me impressionou foi a vulnerabilidade das mulheres nessa situação.

Mas, antes, vamos ser claros aqui. Não precisamos sair do Brasil para saber que as mulheres, simplesmente por serem mulheres, precisam passar a vida se explicando. Como se necessitassem de chancela ou justificativa para determinar o destino de seu corpo ou coração, se podem trabalhar ou ter tesão. Intolerável, não?

Então, o senhor pode imaginar o que isso significa em tempos de guerra, onde a lei e a moral são suspensas?

Conheci certa vez uma garota yazidi. Ela me contou como, depois de sua cidade ser tomada por islamistas, ela foi transformada em escrava sexual. Aqueles olhos verdes intensos se enchiam de lágrimas quando contava que, num calabouço, ela e as demais meninas se dividiam em dois grupos.

Aquelas que rezavam para sobreviver e aquelas que rezavam para morrer logo.

Ela também me contou que, num ato de solidariedade com as outras mulheres que viriam depois delas, foi iniciado um gesto espontâneo de escrever mensagens nas paredes daqueles quartos imundos, inclusive com dicas de como agir. Escreviam com a única cor que tinham. O vermelho do sangue de suas vaginas estupradas.

O senhor me diria: claro, isso é coisa de terrorista islâmico. Sim, sem dúvida. Mas quero lhe contar o que investigações e auditorias revelaram em um local mais próximo de nós: o Haiti.

Ali e em outros locais onde estão destacadas, as tropas de paz da ONU - repletas de moral, credibilidade e protocolos - foram acusadas de estupro e de abusos com mulheres, meninas e meninos. Alguns, em troca de comida. Num caso específico, um garoto era semanalmente estuprado por oficiais, em troca de bolachas. Há até mesmo uma categoria de crianças hoje nesses países, "os filhos da ONU".

Na Sérvia, num barracão onde eram depositados os refugiados que aguardavam para chegar até a Europa Ocidental, conheci uma mulher que não falava. Sua irmã, depois, veio me explicar que ela ficou muda depois de ter sido estuprada pelo "guia" que seus pais tinham contratado na Turquia para que elas cruzassem as fronteiras. Para pagar pelo guia, os pais venderam as únicas coisas que tinham: uma casinha e dois animais.

Em Dadaab, no Quênia, entendi toda a minha ignorância quando fui perguntar para um grupo de crianças do que elas tinham mais medo. Achei que a resposta seria: as bombas de Mogadíscio. Mas era do escuro do campo de refugiados. Quando pedi para saber o motivo, uma delas sussurrou: "não podemos nem ir ao banheiro pela noite. Um homem pode fazer coisas ruins com nosso corpo".

Anos depois, voltei a viajar para a África. Da janela do avião a hélice em que eu voava, podia ver como um garoto usava um pedaço de galho para tentar dirigir o destino de vacas e outros animais. Enquanto ele conseguia dar direção ao gado, algumas reses escapavam um pouco adiante.

Do assento em que eu estava, quase não consegui ouvir quando o piloto se virou para trás e, competindo com o barulho do motor, gritou que estávamos iniciando a aterrissagem. Jamais imaginaria que, minutos depois, era sobre aquele local de terra de onde o garoto estava retirando os animais que o avião iria pousar. O que de fato eu tinha visto era a preparação da pista de pouso.

Eu tinha viajado para um lugar a oeste da cidade de Bagamoyo, na Tanzânia, para escrever sobre o impacto da Aids numa das regiões mais pobres do planeta. Mas seria naquele local que eu descobriria, de uma maneira inusitada, a dimensão do drama de imigrantes e refugiados. Ao longo dos anos, visitei campos de refugiados na fronteira do Iraque, entre o Quênia e a Somália, em Darfur, na rota entre a Turquia e a Europa. Vi milhares de pessoas sem destino. Mas, nas proximidades de Bagamoyo, aquela história era diferente. Oficialmente, não havia uma guerra. Não havia um acampamento de refugiados. Mas eu logo descobriria que nem por isso o desespero deixava de estar presente naquela população.

Eu fazia uma visita a um hospital e esperava para falar com o diretor. Por falta de médicos, ele fora chamado para fazer um parto. Sabia que aquilo significava que eu passaria horas ali, à espera de minha entrevista. Restava fazer o que eu mais gostava nessas viagens: descobrir quem estava ali, falar com as pessoas, perambular pelo local, ler os cartazes e simplesmente observar. No portão do centro de atendimento, centenas de mulheres com seus véus coloridos aguardavam de forma paciente. Tentavam afastar as moscas, num calor intenso, enquanto o choro de crianças rompia os muros descascados daquela entrada de um galpão transformado em sala de espera.

Ao caminhar para uma das alas, fui barrado. Os enfermeiros me pediram que não entrasse no local. Quando perguntei qual era a especialidade daquela área, disseram que não podiam revelar. Em partes da África, o preconceito e o estigma em relação aos pacientes de Aids obrigam os hospitais a não indicar nem em suas paredes o nome da doença. Decidi sair do prédio em ruínas e, num dos pátios do hospital, vi duas garotas brincando.

Não tinham mais de 10 anos de idade. E o único momento em que olharam para o chão, sem resposta, foi quando perguntei o que faziam ali. Mas a curiosidade delas em saber o que um rapaz branco, com um bloco de notas na mão e uma câmera fotográfica, fazia lá era maior que sua vontade de contar histórias. Desisti de seguir com minhas perguntas. Expliquei que era jornalista brasileiro e, para dizer meu nome, mostrei um cartão de visita, que acabou ficando com elas.

Quando iam responder à minha pergunta sobre os seus nomes, nossa conversa foi interrompida por uma senhora que, da porta do hospital, me avisava que o diretor já estava à disposição para a entrevista. Deixei aquelas crianças depois de menos de cinco minutos de conversa. Já caminhando, virei e disse uma das poucas expressões que tinha aprendido em suaíli: kwaheri - "adeus". Ganhei em troca dois enormes sorrisos.

Terminada a entrevista com o diretor do hospital, confesso que nem sequer notei se as meninas continuavam ou não no pátio. Estava ainda sob o choque de um pedido do gerente da clínica, que, ao terminar de me explicar o que faziam, me perguntou se eu não poderia deixar para eles qualquer comprimido que tivesse na mala. Qualquer um. Até mesmo se o prazo de validade já tivesse expirado.

Alguns meses depois, já na Suíça, abri minha caixa de correio de forma despretensiosa ao chegar em casa. Num envelope surrado e escrito à mão, chegava uma carta de Bagamoyo.

Pensei comigo: deve ser um erro e a carta deve ter sido colocada na minha caixa por engano. Eu não conheço ninguém em Bagamoyo. Mas o envelope deixava muito claro: era para Jamil Chade.

Antes mesmo de entrar em casa, deixei minha sacola no chão e abri o envelope. Uma vez mais, meu nome estava no papel, com uma letra visivelmente infantil. Eu continuava sem entender. Até que comecei a ler. No texto, em inglês, quem escrevia explicava que tinha me conhecido diante do hospital e que tinha meu endereço em Genebra por conta de um cartão que eu lhe havia deixado.

Como num sonho, as imagens daquelas garotas imediatamente apareceram em minha mente. Mas o conteúdo daquela carta era um verdadeiro pesadelo. A garota me escrevia com um apelo comovedor. "Por favor, case-se comigo e me tire daqui. Prometo que vou cuidar de você, limpar sua casa e sou muito boa cozinheira." A carta contava que sua mãe havia morrido de Aids - naquele mesmo hospital - e que seu pai também estava morto.

Cada um dos oito filhos fora buscar formas de sobreviver e ela era a última da família a ter permanecido na empobrecida cidade. "Preciso sair daqui", escrevia a garota. A cada tantas frases, uma promessa se repetia: "Eu vou te amar."

Uma observação no final parecia mais um atestado de morte: "Com as últimas moedas que eu tinha, comprei este envelope, este papel e este selo. Você é minha última esperança."

Deputado, talvez o senhor classificaria essa pessoa no grupo de "meninas fáceis". Eu, porém, chorei de desespero e de impotência diante daquele pedido de resgate.

Eu e o senhor- homens brancos - nascemos como a classe mais privilegiada do planeta. Eu e o senhor não tivemos de fazer nada para adquirir esses privilégios. Existimos.

É nossa obrigação, portanto, desmontar o processo de profunda desumanização de uma guerra e da miséria. Cada um com suas armas.

Não sei qual será o destino que a Assembleia Legislativa em São Paulo, seu partido e seus eleitores darão ao senhor. Qualquer que seja ele, só espero que esse episódio revoltante sirva para que haja alguma insurreição de consciências sobre a condição feminina. Na guerra e na paz.

Grato pela atenção

Jamil

#JamilChade #UN #ONU #guerra #war #mulheres #women #crianças #children #paz #peace #abuso #violência #MBL #Brasil #política

hudsonlacerda@diasporabr.com.br

Aborto: é possível ser pró-vida e pró-escolha ao mesmo tempo?

[tradução por #MaríliaMoschkovich]

Traduzi em 2012 este texto de #CarlSagan e #AnnDruyan, e publiquei em meu antigo blog, “Mulher Alternativa”. O texto traz argumentos bastante interessantes, colocando em diálogo a perspectiva biológica e a perspectiva social sobre a vida humana. Em tempos de decisões do STF e bancada evangélica, vale bem a leitura, mesmo considerando alguns problemas e limites tanto da argumentação científica quanto das posições políticas das autoras.

Texto de Carl Sagan e Ann Druyan*

Artigo publicado pela primeira vez na revista Parade com o título de “A questão do aborto: uma busca por respostas” em 22 de Abril de 1990.

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A humanidade gosta de pensar em termos de opostos extremos. Tende a formular suas crenças em termos de “ou isso ou aquilo”, polos entre os quais não reconhece possibilidades intermediárias. Quando forçada a reconhecer que os extremos não são praticáveis, ainda sustenta que são possíveis na teoria mas que em assuntos práticos as circunstâncias nos compelem a abrir mão de algumas posições.

John Dewey, Experience and Education, I (1938)

A questão fora resolvida havia anos. Os tribunais decidiram o caminho do meio. Pensava-se que a luta havia acabado. Ao invés disso o que temos são ataques, bombas e intimidação, assassinato de trabalhadores em clínicas que fazem abortos, prisões, lobby intenso, drama legislativo, audiências públicas, decisões dos supremos tribunais, grandes partidos políticos quase se definindo inteiramente através desta questão, e religiosos ameaçando políticos à perdição. Militantes disparam acusações de hipocrisia e assassinato. A defesa da Constituição e a vontade de Deus são igualmente invocadas. Argumentos duvidosos são repetidos como certezas. As facções em disputa reivindicam a ciência para sustentar suas posições. Famílias se dividem, maridos e esposas decidem não discutir sobre o tema, amigos de longa data não mais se falam. Políticos consultam as pesquisas de opinião para saber o que dizem suas consciências. No meio de tanta gritaria fica difícil para os adversários se escutarem. As opiniões se polarizam. As mentes de fecham.

É errado abortar uma gravidez? Sempre? Às vezes? Nunca? Como decidir? Escrevemos este artigo para melhor compreender que visões disputam tais questões e para ver se nós mesmos encontramos uma posição que nos satisfaça. Não haveria um caminho do meio? Foi preciso pesar os argumentos de ambos os lados em relação a sua consistência e propor exemplos-teste, alguns destes puramente hipotéticos. Se em alguns destes testes parecemos ir muito longe, pedimos aos leitores e leitoras que sejam pacientes conosco — estamos tentando forçar as várias posições até seu limite para ver sua fragilidade e onde falham.

Em momentos contemplativos praticamente todos nós reconhecemos que a questão não é unilateral. Muitos militantes de divergentes pontos de vista, ao que parece, sentem certa inquietação e dificuldade ao confrontarem o que está por trás dos argumentos de seus opositores. (Isto acontece em parte porque tais confrontos são evitados) O assunto certamente toca questões profundas: Quais são nossas responsabilidades para uns com os outros? Devemos permitir que o Estado se intrometa nos aspectos mais íntimos e pessoais de nossas vidas? Quais são as fronteiras da liberdade? O que significa sermos humanos?

Dos muitos pontos de vista que existem de fato, é largamente sustentado — especialmente na mídia que raramente encontra tempo e boa vontade para fazer distinções mais finas — que só existem dois: “pró-escolha” e “pró-vida”. Assim é que estes dois campos de batalha centrais gostam de se chamar e é assim que os chamaremos aqui. Na caracterização mais simplificada, um “pró-escolha” defenderia que a decisão de abortar deve ser feita unicamente pela mulher; o Estado não tem o direito de interferir. Um “pró-vida” defenderia que, desde o momento da concepção, o embrião ou feto estão vivos; que essa vida nos impõe uma obrigação moral de preservá-la; e que o aborto é análogo a um assassinato. Ambos os nomes — “pró-escolha” e “pró-vida” — foram escolhidos tendo em vista influenciar as opiniões daqueles que ainda não têm uma opinião sobre o assunto. Poucas pessoas gostariam de ser colocadas no lado contrário à liberdade de escolha ou contrário à vida. De fato, liberdade e vida são dois dos nosso valores mais caros e aqui eles parecem estar fundamentalmente em conflito.

Vamos considerar essas duas posições absolutistas uma por vez. Um bebê recém-nascido é certamente o mesmo ser que era antes de seu nascimento. Há evidências sólidas de que um feto no final da gravidez responde ao som — inclusive música, mas em especial à voz da mãe. Pode chupar o próprio dedo ou dar uma cambalhota. Ocasionalmente gera padrões de ondas cerebrais de um adulto. Algumas pessoas dizem se lembrarem do próprio nascimento ou mesmo do ambiente uterino. Talvez haja pensamento no útero. É difícil conseguir sustentar a ideia de que a transformação em pessoa aconteça abruptamente no momento do nascimento. Por que, então, seria crime matar uma criança no dia seguinte a seu nascimento mas não no dia anterior?

Na prática isto não é muito importante: menos de 1% dos abortos registrados nos Estados Unidos são realizados nos últimos três meses de gravidez (e, olhando mais de perto, a maioria dos registros nestas condições são na verdade abortos não-provocados ou erros de cálculo na hora de determinar quando o aborto ocorreu). Mas abortos no terceiro trimestre permitem testar o limite do ponto de vista pró-escolha. O direito inalienável de uma mulher ao próprio corpo englobaria o direito de matar um feto próximo ao nascimento, que é idêntico a um bebê recém-nascido?

Acreditamos que a maioria dos apoiadores da liberdade reprodutiva encontre-se perturbada de vez em quando por esta questão. Ao mesmo tempo, relutam em levantá-la por que ela é o começo de um caminho perigoso. Afinal, se um aborto não poderia ser provocado ao nono mês de gravidez, por que deveria ser permitido no oitavo, sétimo, sexto…? Reconhecendo que o Estado possa interferir na gravidez em algum momento não seguiria que o Estado pode intervir a todo e qualquer momento?

Isto nos faz pensar num quadro de legisladores predominantemente homens e muito influentes dizendo às mulheres pobres que elas devem sustentar sozinhas filhos, para o que elas não têm condições materiais; forçando adolescentes a criar filhos, para o que elas não têm condições emocionais; dizendo às mulheres que desejam uma carreira que elas têm de desistir de seus sonhos, ficar em casa e criar bebês; e, pior de tudo, condenando vítimas de estupro e incesto a carregarem e cuidarem dos resultados destes episódios [1] . Proibições legislativas da prática de aborto levantam a suspeita de que seu objetivo seria, na verdade, controlar a independência e a sexualidade das mulheres. Por que os legisladores deveriam ter qualquer direito de dizer às mulheres o que fazer com seus corpos? Ser tolhida de toda sua liberdade reprodutiva é humilhante. As mulheres estão fartas de serem manipuladas.

Mesmo assim, por consenso, todos achamos que deve haver proibições e punições para assassinatos. Não seria muito convincente se a defesa de um assassino fosse alegar que aquela questão é somente entre ele e sua vítima e que não é da conta do governo. Se matar um feto é realmente o mesmo que matar um ser humano, não seria dever do Estado fazer algo contra isso? De fato, uma das funções Estado é, em tese, proteger os mais fracos dos mais fortes.

Se não nos opusermos ao aborto em algum estágio da gravidez, não existe o risco de estarmos desconsiderando toda uma categoria de seres humanos como se não fossem dignos de proteção e respeito? Essa desconsideração não é justamente o que funda o sexismo, o racismo, o nacionalismo e o fanatismo religioso? As pessoas que se dedicam a lutar contra estas injustiças não deveriam então tomar um cuidado imenso para não sustentar outra?

Não existe direito à vida em qualquer sociedade na Terra hoje, nem nunca existiu em qualquer outra época (com algumas raras exceções, como os Jains na Índia): criamos animais para abate; destruímos florestas; poluímos rios e lagos até que peixes não mais possam viver; matamos alces e veados por esporte, leopardos por suas peles e baleias por fertilizante; deixamos golfinhos se enroscarem, agonizantes, em redes para pesca de atum; espancamos filhotes de foca até a morte; tornamos uma espécie extinta a cada dia. Todas estas plantas e animais estão tão vivas quanto nós. O que se está supostamente discutindo e protegendo, então, não é a vida, mas sim a vida humana.

Mesmo com essa proteção, assim definida, o assassinato tornou-se lugar-comum, e financiamos guerras cujos números de mortos são tão terríveis que temos medo de considera-los profundamente. (Aliás, assassinatos em massa promovidos pelo Estado são geralmente justificados redefinindo nossos oponentes — por sua raça, nacionalidade, religião ou ideologia — como menos do que humanos) Essa proteção, esse suposto direito à vida, esquece-se de que 40 mil crianças abaixo dos cinco anos de idade morrem todos os dias em nosso planeta, em decorrência de fome, desidratação, doenças e negligência que poderiam ser facilmente evitadas.

Aqueles que reivindicam “direito à vida” não estão a favor de qualquer tipo de vida, mas particular e especificamente, da vida humana. Estes, como os pró-escolha, precisam decidir então o que é que distingue um ser humano de outros animais e em que momento, durante a gestação, as qualidades unicamente humanas (quaisquer que sejam) aparecem.

Apesar de muitos dizerem o contrário disto, a vida não começa na concepção: é uma cadeia inquebrável que começa próxima à origem da Terra, 4.6 milhões de anos atrás. Nem a vida humana começa na concepção: é uma cadeia inquebrável que data da origem de nossa espécie, centenas de milhares de anos atrás. Cada espermatozoide e cada óvulo humano estão, sem sombra de dúvidas, vivos. Não são seres humanos, claro. No entanto, pode-se argumentar que um ovo fertilizado tampouco o é.

No caso de alguns animais, um ovo se torna um adulto saudável sem a menor ajuda ou influência de um espermatozoide. Um óvulo e um espermatozóide conjuntamente configuram a sequência genética completa de um ser humano. Sob determinadas circunstâncias, depois da fertilização eles podem se desenvolver e tornarem-se bebês. A maioria dos óvulos fertilizados, porém, são rejeitados e naturalmente abortados. O desenvolvimento para se tornar um bebê não é garantido de forma alguma. Tampouco um espermatozoide ou óvulo, sozinhos, são mais potencialmente um bebê ou adulto. Então, se um espermatozoide e um óvulo são tão humanos quanto o óvulo fertilizado produzido em sua união, e se é assassinato destruir um óvulo fertilizado — apesar do fato de que é apenas potencialmente um bebê — por que não seria assassinato destruir um espermatozoide ou um óvulo?

Centenas de milhares de espermatozoides (velocidade máxima com as caudas batendo: cinco polegadas por hora) são produzidos numa ejaculação mediana humana. Um jovem saudável pode produzir, numa semana ou duas, espermatozoides o suficiente para dobrar a população da Terra. Quer dizer então que a masturbação é assassinato em massa? E as ejaculações noturnas ou pura e simplesmente o ato sexual? Quando um óvulo não-fertilizado é expelido a cada mês, consideramos que alguém morreu? Deveríamos ficar de luto por todos estes abortos espontâneos? Muitos animais podem ser criados em laboratórios a partir de uma única célula do corpo. Células humanas podem ser clonadas (talvez o caso mais famoso sendo o clone HeLa, batizado em homenagem à sua doadora, Helen Lane). À luz destas tecnologias, estaríamos cometendo assassinatos em massa ao destruirmos células potencialmente clonáveis? Ao derramarmos uma gota de sangue?

Todo óvulo e espermatozoide humanos são metade genéticas de “potenciais” seres humanos. Deveríamos fazer esforços heroicos para salvar e preservar cada um deles, em todos os lugares, por causa deste “potencial”? Nossa incapacidade em fazê-lo seria imoral ou até mesmo criminal? Claro, há uma diferença entre tirar uma vida e falhar em salvá-la. E há uma diferença gigantesca entre a probabilidade de sobrevivência de um espermatozoide e de um óvulo. O absurdo de uma tropa de preservadores-de-sêmen nos faz questionar se o potencial de um óvulo fertilizado para se tornar um bebê realmente torna sua destruição um assassinato.

Aqueles que se opõem ao aborto se preocupam que, uma vez que o aborto seja permitido após a concepção, nenhum argumento o barraria em estágios posteriores da gravidez. Temem que, então, um dia seja permitido matar um feto que seja indubitavelmente um ser humano. Ambos os pró-escolha e os pró-vida (pelo menos alguns deles) são levados a posições absolutistas por medos paralelos de deixar brechas em suas argumentações.

Outro ponto considerado uma brecha é o daqueles “pró-vida” que consideram ser aceitável fazer exceções nos casos de gravidezes provocadas por estupro ou incesto. Mas por que o direito à vida deveria depender das circunstâncias da concepção? Se a criança que resulta é a mesma, o Estado poderia ordenar vida quando ela vem de uma união oficializada e morte se ela é concebida pela força ou coersão? Como isso pode ser justo? Se as exceções são estendidas para estes fetos, por que deveriam ser proibidas para todos os demais fetos? Esta é uma parte do motivo pelo qual alguns “pró-vida” adotam o que muitas pessoas consideram uma postura revoltante, que é se oporem ao aborto em toda qualquer circunstância — a única exceção sendo, talvez, quando a vida da mãe está em risco [2] .

A maior razão para o aborto no mundo todo é o controle de natalidade. Não deveriam então os opositores do aborto estarem distribuindo contraceptivos nas ruas e ensinando as crianças nas escolas a os utilizarem? Esta seria uma forma eficaz de reduzir o número de abortos. Pelo contrário, os Estado Unidos estão muito atrás de outras nações no que diz respeito ao desenvolvimento de métodos seguros e efetivos de controle de natalidade — e, em muitos casos, a oposição a este tipo de pesquisa (e à educação sexual) vem das mesmas pessoas que se opõem ao aborto [3] .

Parte II

A tentativa de encontrar uma posição coerente e eticamente viável sobre quando, se em algum momento, o aborto deve ser permitido, tem raízes históricas profundas. Frequentemente, em especial nas tradições cristãs, estas tentativas estavam ligadas à discussão sobre em que momento a alma entra no corpo — uma questão não muito pertinente nas investigações científicas e de muita controvérsia mesmo entre grandes teólogos e teólogas. Nesse debate o “animamento” (ensoulment) ocorreria no esperma antes da concepção, na concepção, no momento em que a grávida sente pela primeira vez o feto de mexer dentro dela (quickening) e no nascimento. Ou até depois.

Religiões diferentes têm ensinamentos diferentes. Entre caçadores-coletores geralmente não há proibição do aborto, que era comum também na Grécia Antiga e no Império Romano. Ao contrário, os Assírios mais ortodoxos empalavam as mulheres acusadas de tentarem abortar. O Talmude judeu diz que o feto não é uma pessoa e não tem direitos. O Novo e o Velho Testamento — ricos em proibições de dieta, vestimenta, e palavras que se deve ou não falar — não contém uma única palavra especificamente proibindo o aborto. A única passagem que é remotamente relevante (Êxodo 21:22) decreta que se numa briga uma mulher acidentalmente for atingida e sofrer um aborto, o agressor deve pagar uma multa.

Nem Santo Agostinho nem São Tomás de Aquino consideravam o aborto em início de gravidez como homicídio (este último alegava que isso era porque o embrião não tinha a aparência de um humano). Esta visão foi aceita pela Igreja no Conselho de Viena em 1312, e nunca foi repudiada. A primeira e mais longeva coleção de direito canônico da Igreja (de acordo com John Connery, S. J., um dos maiores historiadores das posições da Igreja sobre o aborto) dizia que o aborto era homicídio somente depois que o feto estivesse “formado” — mais ou menos no final do primeiro trimestre.

Quando os espermatozoides foram examinados no século XVII (dezessete) pelos primeiros microscópios, pensava-se que eram seres humanos completamente formados. Uma ideia antiga de homúnculos foi ressuscitada — na qual cada espermatozoide é um minúsculo humano totalmente formado que teria testículos nos quais haveria outros ainda menores, etc, ao infinito. Em parte por causa dessa má interpretação de dados científicos, em 1869 o aborto por qualquer razão e em qualquer período da gravidez tornou-se motivo para excomunhão. É surpreendente para muitos católicos descobrirem que a data desta proibição não é muito antiga.

Do período colonial até o século XVII, nos Estados Unidos a escolha era da mulher até o momento do “quickening:” (primeira mexida do feto sentida pela grávida). Um aborto no primeiro ou até no segundo trimestre era considerado no máximo uma bobagenzinha cometida. Era raro e quase impossível que houvesse condenações por conta disso, já que se dependia única e inteiramente de um testemunho da própria mulher sobre se já tinha sentido o feto de mexer ou não, e também porque não parecia razoável aos júris condenar uma mulher por exercer seu direito de escolha. Em 1800 não havia, até onde sei, uma única regulamentação sobre aborto nos Estados Unidos. Propagandas de drogas que induziam o aborto eram encontradas em todo jornal e mesmo em publicações religiosas — embora a linguagem fosse eufemística, mesmo claramente compreendida.

Por volta de 1900, porém, o aborto tinha sido proibido a qualquer momento da gravidez em todos os estados da União [EUA], exceto se fosse para salvar a vida da mulher. O que provocou essa inversão? A religião teve muito pouca responsabilidade sobre a mudança. Conversões sociais e econômicas drásticas transformavam o país de uma sociedade agrária para uma sociedade urbana-industrial. Os EUA estavam no processo de mudar, de uma das taxas de natalidades mais altas no mundo, para uma das mais baixas. O aborto certamente tinha um papel nisso e estimulava forças para que fosse suprimido.

Uma das forças mais significantes, dentre estas, foi a profissão médica. Até a metade do século XIX (dezenove), a medicina era um negócio não certificado e sem supervisão. Qualquer um podia pendurar uma grade de horários na parede e se auto intitular “médico”. Com o surgimento de uma nova elite médica educada em universidades, ansiosa para impulsionar o status e a influência da emergente categoria profissional, a Associação Médica dos EUA foi formada. Na primeira década essa associação começou a fazer lobbies contra abortos realizados por qualquer um que não fosse um médico licenciado (por ela mesma). Novos conhecimentos em embriologia, diziam eles, mostravam que o feto seria humano mesmo antes de começar a se mexer no ventre.

O ataque deste grupo ao aborto não foi motivado por uma preocupação com a saúde das mulheres mas, diziam eles, com o bem-estar do feto. Era preciso ser médico para saber quando o aborto seria moralmente justificado, porque a questão dependeria de fatos científicos e médicos sobre os quais eles teriam o monopólio. Ao mesmo tempo as mulheres eram efetivamente excluídas das escolas de medicina, onde tal conhecimento poderia ser adquirido. Então, da forma como as coisas ocorreram, as mulheres não tinham quase nada a dizer sobre o término de suas próprias gravidezes. Era o médico quem podia decidir se a gravidez representava ou não uma ameaça à mulher, e estava totalmente a seu critério definir que tipos de coisas implicavam ou não tais ameaças. Para as mulheres ricas, a ameaça poderia ser à sua tranquilidade emocional ou ao seu estilo de vida. As mulheres pobres frequentemente eram forçadas a recorrerem a fundos de quintal e cabides.

Esta foi a legislação até os anos 1960, quando uma articulação de indivíduos e organizações — a tal associação médica entre elas — lutou para reinstalar os valores mais tradicionais incorporados no caso Roe vs. Wade [4] .

Parte III

Se você deliberadamente matar um ser humano, é assassinato. Se você deliberadamente matar um chimpanzé — biologicamente nosso parente mais próximo, com 99,6% de genes ativos em comum -, o quer que seja, não é assassinato. Até hoje, o assassinato se aplica unicamente ao ato de matar seres humanos. Por este motivo a questão sobre quando tornamo-nos pessoa (ou quando recebemos nossa ‘alma’) é central para o debate sobre o aborto. Quando o feto se torna humano? Quando as características típicas e únicas de ser humano surgem?

Reconhecemos que especificar um momento único atropela variações individuais. No entanto, se precisamos traçar uma linha, ela deve ser traçada de forma conservadora, ou seja, do lado do menor tempo possível entre essas variações. Há pessoas que se recusam a aceitar a definição de um limite numérico/temporal e compreendemos sua inquietação; mas se é para haver leis sobre o assunto é preciso especificar, pelo menos de maneira grosseira, um momento para essa transição de feto para ser humano.

  • Todos nós começamos como um pontinho. Um óvulo fertilizado é mais ou menos do tamanho do ponto final desta frase. O espetacular encontro de um espermatozoide e um óvulo em geral ocorre em uma das duas trompas. Uma célula vira duas, duas viram quatro, e assim por diante — um exponencial de base 2. No décimo dia depois da fertilização o pontinho se tornou uma espécie de esfera oca movendo em direção a outro reino: o útero. Em seu caminho destrói tecido. Suga o sangue de capilares. Banha-se em sangue materno, do qual extrai oxigênio e nutrientes. Estabelece-se como uma espécie de parasita nas paredes uterinas.
  • Na terceira semana, em geral a época para a primeira menstruação que não vem, o embrião em formação tem mais ou menos 2 milímetros de comprimento e está desenvolvendo várias partes do corpo. Somente neste estágio ele começa a depender da placenta, ainda de forma rudimentar. É meio parecido com um verme segmentado [5]
  • No final da quarta semana o embrião já está com 5 milímetros de comprimento. Já é reconhecido como um vertebrado e o coração em forma tubária está começando a bater, alguma coisa parecida com guelras de peixes e anfíbios aparece e um rabo passa a protuberar. Parece uma pequena salamandra ou girino. Este é o final do primeiro mês após a concepção.
  • As divisões grossas do cérebro já podem ser distinguidas na quinta semana. O que depois se tornará olhos passa a aparecer, e pequenos botões ficam visíveis — depois se tornarão braços e pernas.
  • Na sexta semana o embrião tem 13 milímetros de comprimento (1,3cm). Os olhos ainda ficam nos lados da cabeça, como em muitos animais, e a face de réptil apresenta pequenos cortes e dobras onde eventualmente serão a boca e o nariz.
  • No final da sétima semana o rabo praticamente se foi e características sexuais começam a poder ser identificadas (mesmo que em fetos de ambos os sexos a aparência seja feminina). A face é mais parecida com a de um mamífero, mas ainda algo suína e não humana.
  • No final da oitava semana a face é similar à de um primata mas ainda não muito humana. A maioria das partes do corpo humano está presente pelo menos em sua essência. A anatomia cerebral mais baixa está bem desenvolvida. O feto mostra resposta a estímulos delicados.
  • No final da décima semana, a face já tem uma feição caracteristicamente humana. Começa a ser possível distinguir fêmeas e machos. Unhas e estrutura óssea não serão visíveis até pelo menos o terceiro mês (12 semanas).
  • No quarto mês, já se pode diferenciar o rosto de fetos diferentes. É comum que se consiga sentir o feto se mexendo somente a partir do quinto mês. Os bronquíolos dos pulmões não começam a se desenvolver até pelo menos o sexto mês, e os alvéolos vêm ainda mais tarde.

Então se apenas pessoas podem ser assassinadas, quando é que o feto torna-se pessoa? Quando sua face se torna humana, no final do primeiro trimestre? Quando passa a responder a estímulos, de novo, na mesma época? Quando se torna ativo o suficiente para que a grávida sinta ele se mexer, geralmente no meio do segundo trimestre? Quando os pulmões alcançam um estágio de desenvolvimento suficiente que permitiria ao feto, ao menos em tese, respirar sozinho no ar exterior ao útero?

O problema desta métrica de desenvolvimento não é só que ela é arbitrária. É ainda mais perturbador o fato de que nenhuma destas fases envolve características unicamente humanas — exceto no caso superficial da aparência facial. Todos os animais respondem a estímulos e se mexem na gestação. Muitos são capazes de respirar. Mas isso não nos impede de massacrá-los aos milhões. Reflexos e movimento e respiração não são o que nos torna humanos.

Outros animais têm vantagens sobre nós — em velocidade, força, resistência, habilidade de escalar ou cavar túneis, camuflagem, visão ou olfato ou audição, maestria nos ares ou na água. Nossa única grande vantagem, o segredo de nosso sucesso, é o pensamento — pensamento tipicamente humano. Somos capazes de refletir sobre as coisas, imaginar eventos que ocorrerão, desvendar problemas. Foi assim que inventamos a agricultura e a civilização. O pensamento é nossa bênção e nossa maldição e nos faz sermos quem somos.

O pensamento ocorre, claro, no cérebro — especialmente nas camadas superiores da “massa cinzenta” chamada córtex cerebral. Os cerca de 100 bilhões de neurônios no cérebro constituem a base material do pensamento. Os neurônios se conectam uns com os outros e suas conexões têm um papel decisivo no que experimentamos como pensamento. Mas as conexões de neurônios em larga escala não começam até a 24ª ou 27ª semana de gravidez — o sexto mês.

Colocando eletrodos não-nocivos na cabeça de um sujeito, cientistas conseguem medir a atividade elétrica produzida pela rede de neurônios dentro do crânio. Diferentes tipos de atividade mental mostram diferentes padrões de ondas cerebrais. As ondas cerebrais típicas de um adulto humano, porém, não aparecem em fetos até pelo menos a 30ª semana de gravidez — quase no início do terceiro trimestre. Fetos mais jovens do que isso — não importa o quão vivos e ativos possam ser — não têm a arquitetura cerebral necessária. Não podem ainda pensar.

Pensar em matar uma criatura viva, especialmente uma que pode mais tarde se tornar um bebê, é perturbador e doloroso. Rejeitamos os extremos “sempre” e “nunca” e isto nos coloca — queiramos ou não — numa brecha argumentativa. Se formos forçados a escolher um critério de desenvolvimento, é aqui que defendemos que a linha seja traçada: quando o início do pensamento tipicamente humano torna-se preliminarmente possível.

Na verdade esta é uma definição um tanto conservadora: ondas cerebrais regulares são raramente encontradas em fetos. Mais pesquisas ajudariam nesta definição. (Ondas cerebrais bem definidas em fetos de babuínos e ovelhas também começam no final da gestação) Se quisermos tornar este critério ainda mais restritivo, para permitir fetos precoces ocasionais, poderíamos traçar a linha aos seis meses de gestação. Por acaso, é justamente o limite estabelecido pela Suprema Corte [dos EUA] em 1973 — embora por razões completamente distintas das aqui apresentadas.

A decisão no caso Roe versus Wade mudou a lei dos EUA sobre o aborto. Permitiu abortos além do primeiro trimestre, caso a mulher solicitasse, com algumas ressalvas sobre a saúde da mulher grávida caso fosse realizado no segundo trimestre. Permitia aos Estados que o aborto fosse proibido no terceiro trimestre exceto se houvesse ameaça grave à vida ou à saúde da mulher. No caso Webster, em 1989, a Suprema Corte [dos EUA] recusou reverter a decisão feita em Roe versus Wade mas deixou em aberto para que os Estados decidissem por si mesmos.

Qual era a argumentação em Roe versus Wade? Nenhum peso foi dado ao que acontece com uma criança ou com sua família uma vez que ela nasça. No lugar disso, a corte julgou que as garantias constitucionais de direito à privacidade se protegiam o direito à liberdade reprodutiva das mulheres. A garantia de privacidade da mulher e o direito do feto à vida precisam ser pesados — e quando a corte pesou, neste caso, priorizou a privacidade no primeiro trimestre e a vida do feto no terceiro. A transição não foi definida com base nas considerações das quais tratamos neste texto — não foi o momento em que o corpo recebe a alma, nem quando o feto passa a ter características tipicamente humanas o suficiente para que seja protegido pelas leis referentes a assassinato. No lugar disso o critério adotado foi definir quando o feto já conseguiria viver fora do útero, sem o corpo da mulher. Isto se chama “viabilidade” e depende parcialmente da habilidade do feto de respirar. Até cerca da 24ª semana, ou início do sexto mês de gestação, os pulmões simplesmente não estão formados e um feto não é capaz de respirar — não importa quão avançado possa ser um pulmão artificial que poderia ser instalado. Este é o motivo pelo qual Roe versus Wade permite aos Estados proibir o aborto no último trimestre. É um critério extremamente pragmático.

Se o feto seria viável fora do útero em determinado estágio da gestação, segue este argumento, então neste momento o direito do feto à vida se sobrepõe ao direito da mulher à privacidade. Mas o que é que “viável” realmente significa? Mesmo um recém-nascido de 9 meses de gestação não é viável sem uma série de cuidados e amor. Há algumas décadas atrás, antes da incubadora, bebês nascidos no sétimo mês tinham muito pouca viabilidade. O aborto no sétimo mês teria sido permitido em tal época, então? Após a invenção da incubadora, os abortos de sétimo mês de repente se tornaram imorais? O que acontece se, no futuro, uma nova tecnóloga permitir que um útero artificial geste um feto mesmo antes do sexto mês, nutrindo-o e passando oxigênio pelo sangue — como a mãe faz através da placenta e do sistema sanguíneo fetal? Garantimos que essa tecnologia provavelmente não será desenvolvida logo, nem estará acessível a muita gente. Mas se estivesse, seria então imoral abortar antes do sexto mês, quando antes era moral? Uma moralidade que depende da tecnologia e muda com ela é uma moralidade frágil; para alguns também é uma moralidade inaceitável.

Por que exatamente a respiração (ou função renal, ou habilidade em resistir a doenças) justifica proteção legal? Se for mostrado que um feto pode pensar e sentir mas não tem a capacidade de respirar, seria tudo bem mata-lo? Valorizamos mais a respiração do que o pensamento e a capacidade de sentimento? O argumento da viabilidade não pode, nos parece, determinar de forma coerente quando abortos podem ser feitos. Outros critérios são necessários. Novamente, oferecemos o início do pensamento rudimentar humano como este critério.

Como, na média, o pensamento fetal começa mais tarde do que o desenvolvimento dos pulmões, pensamos que Roe versus Wade é uma boa decisão, muito prudente, sobre uma questão muito difícil e muito complexa. Com proibições do aborto no último trimestre –exceto nos casos de grave necessidade médica — chega a um equilíbrio entre as reivindicações aparentemente conflitantes entre direito à liberdade e direito à vida.


Nota final sobre a recepção do público:

Quando este artigo foi publicado na Parade foi acompanhado por uma caixa de texto com um número de telefone gratuito para que os leitores e leitoras expressassem suas opiniões sobre o aborto. Um total incrível de 380 mil pessoas telefonaram. Expressaram, grosso modo, quatro tipos de opinião: “Aborto após a concepção é assassinato”, “Uma mulher tem o direito de escolher abortar a qualquer momento durante a gravidez”, “O aborto deve ser permitido nos primeiros três meses de gestação apenas” e “Abortos devem ser permitidos nos primeiros seis meses de gravidez”. A Parade é publicada aos domingos, e na segunda-feira as opiniões já estavam divididas nestes quatro grupos. O Sr. Pat Robertson, um fundamentalista cristão e candidato presidencial em 1992, apareceu na segunda-feira em seu programa diário na televisão ordenando que seus fiéis “tirassem a Parade do lixo” e enviassem uma mensagem clara dizendo que matar um zigoto humano é assassinato. Eles o fizeram. A atitude em geral pró-escolha da maioria dos estadunidenses — como mostrado em pesquisas demograficamente controladas e como tinha sido refletido nas ligações recebidas após a publicação do artigo — foi escondida por uma organização política manipulando respostas.


Notas:

[1] Dois dos pró-vida mais enérgicos de todos os tempos foram Hitler e Stalin — que assim que subiram ao poder criminalizaram os abortos permitidos em lei. Mussolini, Ceausescu e incontáveis outros ditadores e tiranos nacionalistas também o fizeram. Claro que isso não é, em si, um argumento pró-escolha, mas nos deixa alertas para a possibilidade de que ser contra o aborto nem sempre significa ser comprometido verdadeiramente com a vida humana.

[2] Martinho Lutero, fundador do protestantismo, se opunha até mesmo a esta exceção: “Se estiverem cansadas ou morrerem por gravidez ou parto, isto não importa. Que morram pela fertilidade — é para isto que existem” (Lutero, Com Ebelichen Leben, 1522).

[3] De forma semelhante, não deveriam os “pró-vida” contar os aniversários do momento da concepção e não do momento do nascimento? Não deveriam perguntar mais a seus pais sobre o histórico sexual deles e sua concepção? Esbarrariam numa incerteza, ainda assim: pode demorar horas e até dias após o ato sexual para que a concepção aconteça (uma dificuldade para aqueles pró-vida que também buscam interpretações da astrologia).

[4] Nota de tradução: “Roe versus Wade”, foi um caso julgado pela Suprema Corte nos Estados Unidos, que mudou a prática judicial sobre o aborto. A partir deste julgamento, o aborto passou a ser permitido quando a mulher requisitasse sem ter o primeiro trimestre da gravidez como limite máximo. Ao final deste texto o autor reflete mais especificamente sobre este episódio.

[5] Uma quantidade razoável de publicações fundamentalistas cristãs e outras de direita criticaram este argumento — alegando que ele seria baseado numa doutrina obsoleta, chamada recapitulação, de um biólogo alemão do século XIX (dezenove). Ernst Haeckel propôs que as etapas do desenvolvimento embrionário de um animal reconstruiria os estágios do desenvolvimento evolutivo de seus ancestrais. A recapitulação tem sido tratada de forma exaustiva e cética pelo biólogo evolutivo Stephen Jay Gould (em seu livro Ontogeny and Phylogeny [Cambridge: Mass.: Harvard University Press, 1977]). Mas este artigo não contém uma única palavra sobre recapitulação, como o leitor deste trecho poderia talvez supor. As comparações do feto humano com outros animais (adultos) é baseada na apar~encia do feto. É uma forma não-humana e nada nesta história evolutiva está sendo usado como argumento nestas páginas.


#aborto #abortion #rights #direitos #família #family #mulheres #mulher #women #woman #feminism #feminismo #vida #life

hudsonlacerda@diasporabr.com.br

Nilma Lino é uma das vencedoras de prêmio nacional para cientistas mulheres

Professora da UFMG e ex-ministra, Nilma é referência na pesquisa e na luta antirracista e feminista

https://www.brasildefatomg.com.br/2022/01/26/nilma-lino-e-uma-das-vencedoras-de-premio-nacional-para-cientistas-mulheres

A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) anunciou suas três vencedoras da 3ª edição do prêmio “Carolina Bori Ciência & Mulher”. A organização premiou três mulheres cientistas que realizaram contribuições de destaque em três áreas: Humanidades, Biológicas e Saúde, e Engenharias, Exatas e Ciências da Terra.

Nilma Lino Gomes, ministra das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos no governo da ex-presidenta Dilma Rousseff, foi a vencedora na área de Humanidades. Nilma é professora emérita, ou seja, que se aposentou em posição honrosa e continua mantendo seu título de professora, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Ela também é reconhecida como uma das maiores especialistas em políticas afirmativas do país.

Em seu perfil no Instagram, Nilma agradeceu a homenagem e reafirmou sua visão do que é fazer ciência. “Estou feliz. É uma homenagem que compartilho com todas as pessoas que lutam pela democracia, pela emancipação social, contra o racismo e todas as formas de discriminação. Eu não ando só”, escreveu.

“Lutamos por uma ciência e produção do conhecimento emancipatórias e engajadas que não se separam da luta contra as desigualdades. Que não dormem em paz sabendo que, no Brasil e no mundo, as opressões e violências continuam. E que é preciso, sempre, descolonizar e re-humanizar as Humanidades”, completou.

Prêmio será entregue em fevereiro

As outras duas pesquisadoras vencedoras do prêmio foram Gulnar Azevedo e Silva, professora titular do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), venceu na área de Biológicas e Saúde; e Beatriz Leonor Silveira Barbuy, professora titular do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da Universidade de São Paulo (USP), na área de Engenharias, Exatas e Ciências da Terra.

A SBPC realiza a cerimônia de premiação, que será virtual, em 11 de fevereiro às 10:30, Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, instituído pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). A entrega poderá ser assistida pelo Canal do YouTube da entidade.

#NilmaLinoGomes #mulheres #MinasGerais #Brasil #UFMG #ciência #pesquisa #prêmio #SBPC

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Negacionismo da casa-grande

October 04, 2021

VÁRIOS AUTORES (nomes ao final do texto)

#LeandroNarloch é um dos maiores pensadores atuais do #humanitismo. Ao escrever, em coluna nesta Folha, que foi possível a certos escravizados triunfar por mérito e esforço próprios (“Luxo e riqueza das ‘sinhás pretas’ precisam inspirar o movimento negro”; 29/9), sugere também ser possível triunfar em uma sociedade injusta e desigual como a nossa. Ao defender abertamente a ideia de que as distorções hierárquicas brasileiras são legítimas, sua coluna parece ter saído diretamente das páginas do jornal Atalaia, do romance de Machado de Assis.

A #diáspora #africana, quatro séculos de #escravidão, documentos, relatos, pesquisas e milhões de brasileiros descendentes de africanos —nada disso é páreo para a #história pessoal de algumas #mulheres.

A escrita da história envolve disputas, o que nos exige compromisso contra todo um arsenal de horrores que alimentou, por exemplo, o fascismo. Por tamanha responsabilidade, o trabalho do historiador é um exercício ético constante; já a produção de caricaturas e outras formas textuais, não.

Defensor da #meritocracia nos trópicos, podemos já antever a reação do jornalista não apenas a este, mas também a outros textos: ver-se como uma pobre mente pensante, supostamente autônoma, vítima de um silenciamento, que teria ousado desafiar o status quo.

O historiador Pierre Vidal-Naquet já nos alertava em seu trabalho sobre o Holocausto, “Os Assassinos da Memória”, de que podemos e devemos sempre #discutir #sobre revisionistas, mas #jamais #com os #revisionistas.

Certo mito apaziguador diz que a história do #Brasil é caracterizada por um perfil relativamente pacífico, o que é rapidamente desmentido por inúmeras guerras, rebeliões, sedições e revoltas contra um projeto de país forjado em ferro, brasa, mel de cana, pelourinhos, senzalas, concentração fundiária, aldeias mortas, tambores silenciados, truculência oligárquica e chicote dos capatazes, entre outros.

Mesmo assim, o colunista insiste na manutenção do que a herança escravista produz de pior: a #negação da resistência negra e o elogio àqueles escravizados que, inseridos na dinâmica brutal do escravismo, alcançaram a plena realização como #senhores de escravizados.

Os horrores da escravidão e sua herança para a sociedade brasileira estão presentes em farta documentação e foram objeto de numerosos estudos de pesquisadores brasileiros. Contudo, historiadores e suas obras raramente ganham a projeção do texto falacioso e racista de Narloch.

A irrelevância das #bobagens que foram escritas não merece resposta no campo da historiografia. Basta reconhecer sua excepcionalidade e a persistência do #preconceito, numa sociedade em que a elite era quase uniformemente branca —e continua a sê-lo. O sucesso parcial dentro de parâmetros manifestamente injustos não os legitimam; antes, aumentam seu horror.

O problema maior reside no fato de que essas aberrações se vulgarizam e chegam às salas de aula, obrigando #educadores a confrontá-las. É por conta da projeção que textos dessa natureza ganham que todos os dias professores entram em sala de aula para reafirmar o #óbvio, que #escravidão, #nazismo e #ditadura existiram e devem ser condenados —ou que vacinas salvam vidas.

Não tenhamos ilusões. Ao combater e desqualificar a memória do sofrimento e da luta dos mortos, gente como Narloch pretende —mirando a casa-grande— impedir que elas sejam centelhas capazes de animar as lutas dos vivos em nome de uma sociedade mais justa e fraterna. Daí sua tentativa francamente bizarra de pautar o #movimento #negro, cinicamente sugerindo a valorização daqueles que participaram do sistema de exploração em vez dos que o contestaram.

Dar espaço e, consequentemente, projeção a esse tipo de argumento #não é um exercício de #democracia. O #negacionismo é tal qual o abraço do afogado: quando se dialoga com ideias falaciosas, não há o que ser salvo; simplesmente afunda-se junto, pois o que procuram não é #debate, mas a #provocação.

Mais importante até do que uma resposta ao colunista e seus congêneres é uma resposta da própria Folha, pois sua busca pela “pluralidade de ideias” degenerou-se em palanque justamente para aqueles que são contra essa #diversidade, os quais não hesitam em usar de má-fé para distorcer a realidade e defender a hierarquia excludente que marcou a nossa história. É esse o papel de um jornal a serviço da democracia?

Rodrigo Nagem de Aragão
Mestrando em história pela USP

Ana Paula Saviatti
Doutoranda em história pela Unicamp

Dennis Almeida
Professor de história

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
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faconti@joindiaspora.com

Jair #B0ls0naro (sem partido) veta distribuição gratuita de #AbsorventesHigiênicos -
https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2021/10/07/bolsonaro-veta-distribuicao-gratuita-de-absorventes-higienicos.htm -
Via UOL - #Meninas #Mulheres -
"...De acordo com o relatório deste ano realizado pelo UNFPA e UNICEF, ''Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos'' mais de 4 milhões de jovens não têm itens básicos de higiene nas escolas quando estão menstruadas e 713 mil delas vivem sem acesso a banheiro ou chuveiro em seu domicílio..." -