#paz

hudsonlacerda@diasporabr.com.br

Vice-presidente eleita da Colômbia, Francia Márquez concede entrevista a Mônica Bergamo na sede da Fundação Perseu Abramo, em São Paulo Rubens Cavallari - 26.jul.2022/Folhapress

28.jul.2022 às 4h00

#MônicaBergamo é jornalista e colunista.


No próximo dia 7, a #Colômbia viverá um momento histórico: #GustavoPetro, eleito presidente em junho, tomará posse como primeiro presidente de #esquerda da história do país.

Mais simbólica ainda será a chegada da vice-presidente eleita, #FranciaMárquez, ao poder. Aos 40 anos, advogada e ativista ambiental, ela será a primeira #mulher #negra a ocupar um cargo tão elevado na hierarquia colombiana.

Francia nasceu em Suárez, no Vale do Cauca, e ficou conhecida pela luta contra a mineração ilegal. Mãe solo aos 16 anos (ela hoje tem dois filhos), trabalhou como empregada doméstica para pagar os estudos.

A força de sua figura emblemática fez com que ela tivesse uma agenda superlotada na terça (26) em São Paulo, onde se encontrou com o ex-presidente #Lula ( #PT ). Na mesma tarde, abriu espaço para se reunir com lideranças de movimentos negros, do #MST, do #PSOL e lideranças #LGBTQIA+ na sede da Fundação Perseu Abramo, vinculada ao PT.

Anotou tudo o que ouviu, tirou selfies e depois partiu para o Rio de Janeiro para se encontrar com novas lideranças.

Antes de viajar, Francia Márquez concedeu uma entrevista à coluna em que defendeu a legalização das drogas, revelou como mulheres negras na Colômbia foram violentadas e marcadas como animais, reconheceu que a esquerda governará em contexto mundial adverso e disse torcer pela eleição de Lula.

A senhora veio ao Brasil e se reuniu com Lula e com diversas lideranças políticas e sociais —nenhuma delas ligada a Jair Bolsonaro. Como vai ser a relação de seu governo, que começa em agosto, com o dele, que fica no cargo pelo menos até dezembro?

Eu vim ao Brasil para me reunir com líderes políticos e sociais, tanto do movimento negro quanto de esquerda. Acabo de falar com o candidato à Presidência do Brasil que espero que ganhe as eleições, Lula da Silva.

E digo isso porque acredito que Lula é o único presidente que levou em consideração os direitos da população negra no Brasil. Um país em que mais de 50% das pessoas são negras tem que pensar em políticas de governo a favor dessa população.

É como uma diáspora africana, uma diáspora de descendência africana. Temos um enraizamento negro profundo. Brasil e a Colômbia são os dois países da América Latina com a maior população afrodescendente da região.

São cerca de 200 milhões de afrodescendentes ou negros, o que exige uma política internacional para lutas contra o racismo.

Em segundo lugar, sou a primeira mulher de ascendência africana a ser eleita vice-presidente da Colômbia, em duzentos anos [de pleitos eleitorais]. E a segunda da região [antes dela, #EpsyCampbell foi eleita vice-presidente da #CostaRica, em 2018].

Nesse sentido, meu compromisso, além da responsabilidade legal que tenho na Colômbia, é também de impulsionar as lutas dos movimentos sociais negros, dos movimentos #indígenas, dos movimentos #camponeses, dos movimentos #ambientais que ajudam a enfrentar o desafio da crise ambiental, dos movimentos de #mulheres por seus #direitos à #igualdade e #justiça. Essa é a razão pela qual vim ao Brasil.

Sobre o governo #Bolsonaro: o povo brasileiro votou nele. E respeitamos essa decisão, ainda que não concordemos com as ideias e políticas dele.

Temos políticas de compromisso social, e as políticas do presidente Bolsonaro são de outra dimensão. Mas nós o respeitamos porque o povo brasileiro votou nele, e os povos têm autonomia para decidir sobre seu destino. Tentaremos ter as relações necessárias e possíveis para que haja tranquilidade na região.

Há algum temor de que o presidente Bolsonaro não respeite o resultado das #eleições brasileiras e haja turbulências? Vocês têm isso no radar?

Na Colômbia também enfrentamos o processo eleitoral com muitos receios. Nos últimos dias de campanha, [o candidato a presidente] Gustavo Petro e eu precisamos fazer discursos cercados por escudos antibalas por causa das ameaças de assassinato que recebíamos.

Foi muito complicado. E esperamos que esse processo no Brasil seja democrático, tranquilo, que transcorra em paz e que os brasileiros tomem a sua decisão.

Se o processo democrático não for respeitado, haverá uma violação aos direitos humanos.

Se isso ocorrer, vocês, brasileiros, teriam que ver em primeiro lugar o que fazer. E nós levantaríamos a nossa voz a favor da democracia na região, a favor da paz, a favor da garantia dos direitos humanos com todo o respeito que cada governo e cada país merece.

A senhora é #ambientalista, e a Colômbia compartilha a #floresta amazônica com o Brasil. Como vê as políticas do governo Bolsonaro para a região?

A #Amazônia é compartilhada por #Brasil, #Peru, Colômbia. E, nesse sentido, é um ecossistema. Um governo que não pensa em conservar ou proteger a Amazônia, reconhecendo que ela é o pulmão do mundo, que grande parte da biodiversidade do ar e da vida é gerada neste lugar, é um fracasso.

Conservar e cuidar da floresta é um desafio, sim, para o nosso governo e para o governo do Brasil, frente à crise ambiental do planeta.

De nossa parte, acompanhamos a decisão dos povos de cuidarem de seu território como um espaço de vida.

Nosso governo se comprometeu a fazer a #transição da #economia extrativista para a economia sustentável. E vamos trabalhar nisso. É claro que a mudança não acontece da noite para o dia. É um processo que implica adaptações institucionais, normativas, #pesquisa, #ciência e #tecnologia para fazer essas inovações.

Mas é uma necessidade mudarmos para um modelo econômico que seja sustentável. Na Colômbia, estamos dispostos a começar a jornada. Esperamos que isso aconteça em toda a região.

A Colômbia elegeu pela primeira vez em sua história um governo de esquerda. Países como #Chile, #Bolívia e #Argentina também têm presidentes desse campo político, o que tem sido visto como uma nova "onda rosa" no continente. Caso Lula não ganhe as eleições, essa onda perderia força? Ficaria mais difícil implantar as políticas que defendem?

Se Lula ganhar, seguramente será mais fácil promover essas agendas pois seu governo já tinha começado a adotar políticas de inclusão, de erradicação da fome, políticas para garantir a participação de mulheres.

Se ele não vencer as eleições, os movimentos brasileiros vão seguir na resistência, não? E nós, desde a Colômbia, vamos ter que ver como nos articularemos com o movimento do Brasil, que é enorme, que é diverso, que é gigante e coloca as lutas sobre a mesa.

Mas se Lula ganhar será magnífico porque não somente vamos nos articular entre movimentos sociais, mas também com um governo que terá agendas muito semelhantes às que impulsionaremos a partir da Colômbia.

Na primeira "onda rosa" da América Latina, no começo dos anos 2000, o momento econômico era muito favorável. E agora há pandemia, guerra, inflação e recessão. E uma nova direita emergiu com força nesses países. Será possível à esquerda repetir os êxitos de distribuir renda e tirar tantas pessoas da pobreza? Ou pode haver uma grande frustração?

A Colômbia nunca fez parte dessa onda. Os governos do país sempre foram de #direita ou de #ultradireita. Os povos étnicos, os movimentos de esquerda nunca tiveram a oportunidade de governar.

É a nossa primeira experiência de governo. O momento é mais difícil, mas ele seria difícil também para um governo de direita.

Ainda que adverso, assumimos a necessidade de mudanças. E vamos implementá-las, em meio às diferenças e às possibilidades que se apresentam. A Colômbia tem vários #desafios, e um deles é chegar à #paz. Se alcançarmos a paz completa na Colômbia, toda a região se beneficiará. Estamos buscando um grande acordo nacional.

Outro desafio é enfrentar o #racismo estrutural.

Vamos criar o Ministério da Igualdade, fundamental para que o país comece a reconhecer que existem comunidades vulneráveis, que as maiorias não têm condições básicas para viver com dignidade, que há uma desigualdade histórica no país que precisa ser superada.

Vamos criar também a Comissão de Reparação Histórica sobre os efeitos da #escravidão e do #colonialismo.

Além do cenário econômico adverso, vocês têm também uma #oposição de direita muito forte no #Congresso. De novo: as #expectativas geradas não estão muito altas?

É claro que as pessoas têm expectativas, pois nunca antes houve um governo progressista e de esquerda. Mas temos sido muito honestos. Obviamente que não se transformam 500 anos de opressão, exclusão e violência em apenas quatro anos [duração do mandato de Gustavo Pietro e da vice].

Seguramente muitas das mudanças que desejamos não conseguiremos fazer. Mas temos focado em alguns pontos, como os acordos de paz, as questões energéticas, a recuperação da produção do campo colombiano. Talvez não com uma #reformaagrária, que é o desafio maior, mas com o que já existe. O Estado tem terras, as famílias têm terras, os indígenas têm terras produtivas.

O que todos precisam é de apoio para produzir: Subsídios, estrada, infraestrutura, conectividade, tecnologia para desenvolver seus projetos.

Os #EUA e a Colômbia há muitos anos declararam a chamada #guerra às #drogas. A senhora acredita na sinceridade dessa guerra? Ou ela serviu de pretexto para que os norte-americanos pudessem ter uma presença militar muito forte no país, com sete bases e inclusive deslocamento interno de tropas? Como será a partir de agora a relação entre os dois países?

A ideia é fortalecer a relação com os Estados Unidos. Já estamos falando com eles a partir de novos enfoques. Não o de segurança, mas, sim, o de justiça social, o de enfrentamento das mudanças climáticas.

Estamos conversando sobre novos caminhos para mudarmos o paradigma da #política antidrogas, que tem sido ineficaz, que tem deixado mortos nos territórios e riquezas nos bancos. Que tem levado corrupção às instituições do Estado colombiano.

Conversamos agora em termos de regularização, de legalização [das drogas], de mudar o uso da #coca e da #maconha para produzir #medicamentos, #alimentos e para uso na indústria #têxtil.

A senhora acredita que a Colômbia está pronta para discutir a legalização das drogas?

Nunca esteve pronta. Assim como nunca esteve pronta para ter uma vice-presidente mulher e negra. E aqui estou eu.

Nenhum país nunca estará pronto [para certos temas] se não fazemos o exercício da mudança. O Brasil nunca estará pronto para a participação das mulheres se algumas não se atrevem a disputar o poder. Há que fazer. Há que tentar, pelo menos. E é isso o que nós vamos fazer.

E a presença #militar dos EUA na Colômbia?

Ainda não dialogamos sobre isso. O que, sim, vamos fazer é uma #reforma nas #polícias para que elas atuem de acordo com os #direitoshumanos, para que jovens, camponeses e líderes sociais colombianos deixem de morrer, para que elas recuperem a confiança da sociedade.

​A Colômbia voltará a ter relações com a #Venezuela e reconhecerá #NicolásMaduro como presidente do país?

Claro que sim. Ele é o presidente. Vamos rever as relações com a Venezuela para garantir os direitos sobretudo de todas as pessoas que vivem nas fronteiras e que foram afetadas por essa política violenta entre a Colômbia e aquele país. Vamos resolver o conflito fronteiriço, reativar o comércio que existia nas fronteiras e encontrar o caminho que nos permita sair desse conflito armado.

Como vê o governo de Maduro?

Eu o respeito tanto quanto respeito o governo do Brasil. Seguramente não compartilhamos de muitas coisas, mas é o governo que os venezuelanos elegeram, assim como Bolsonaro é o presidente que vocês elegeram aqui. Então nós os respeitamos e reconhecemos.

Reconhecemos a autonomia e a autodeterminação dos povos, mesmo que não estejamos de acordo com eles. Mas, em meio a divergências e desacordos, eu acredito que se pode construir.

A ex-presidente #Dilma Rousseff dizia que os homens no poder, por mais duros que sejam, são vistos como firmes, decididos. E que o olhar para a mulher é diferente, há muitos preconceitos. É isso mesmo. Nenhuma mulher que não tenha caráter vai chegar a um lugar como o que eu cheguei. Para chegar ao poder, se necessita caráter, mostrar que somos capazes.

Na campanha, diziam a meu respeito: "Ah, por que ela não ri?". Porque não há do que rir. A mulher não tem que estar todo o tempo sorrindo na política. Os homens não sorriem todo o tempo.

#machismo na política, e temos que romper com isso. Com os estereótipos e com as formas erradas de se medir as mulheres na política. Eu acredito que temos o direito de nos expressarmos da forma que queiramos. Isso também é bem político.

​> Há hoje questionamentos sobre o que se chama de "feminismo branco", em que os problemas e anseios das mulheres #negras não teriam sido reconhecidos. Como você se relaciona com o feminismo e o que pensa disso?

Eu venho reconhecendo o #feminismo e aprendendo [com ele], reconstruindo-me do machismo também. Mas reconhecendo que as violências patriarcais e de #gênero não afetam todas as mulheres da mesma maneira, ainda que sejam as mesmas violências.

Portanto, as políticas têm que levar em consideração a interseccionalidade de raça, classe e gênero.

A Comissão da Verdade na Colômbia acaba de entregar o relatório específico sobre povos étnicos, negros e indígenas. Ele mostra que uma grande parte das mulheres do país experimentou efeitos desproporcionais do conflito armado. Muitas foram estupradas. Mas as mulheres negras, além disso, foram marcadas, como no tempo da escravidão.

Isso mostra o nexo entre o racismo e o conflito armado. Os atores armados, além de violarem aquele #corpo por ser mulher, consideraram que, por ser negra, poderiam marcá-la como a um animal.

psych@diasp.org

He said he'd never sing this publicly unless it was the end of the world - or the world was in strong need of a message of hope. From Julian Lennon (John's son), for the people of Ukraine especially.

Julian Lennon Performs 'IMAGINE' for Global Citizen's Stand Up For Ukraine w/Nuno Bettencourt

“The War on Ukraine is an unimaginable tragedy... As a human, and as an artist, I felt compelled to respond in the most significant way I could.
So today, for the first time ever, I publicly performed my Dad’s song, IMAGINE.
Why now, after all these years? - I had always said, that the only time I would ever consider singing ‘IMAGINE' would be if it was the ‘End of the World’…
But also because his lyrics reflect our collective desire for peace worldwide. Because within this song, we’re transported to a space, where love and togetherness become our reality, if but for a moment in time…
The song reflects the light at the end of the tunnel, that we are all hoping for...
As a result of the ongoing murderous violence, millions of innocent families, have been forced to leave the comfort of their homes, to seek asylum elsewhere.
I’m calling on world leaders and everyone who believes in the sentiment of IMAGINE, to stand up for refugees everywhere! Please advocate and donate from the heart. #StandUpForUkraine
—Julian Lennon

#Ukraine #Imagine #Peace #JohnLennon #JulianLennon #music #classic #musica #musique #paz
# 🇺🇦 ☮️

eudaimon@diasp.nl

Perder la ingenuidad, volver a pensar la guerra | ctxt.es https://ctxt.es/es/20220301/Firmas/39127/ingenuidad-guerra-clausewitz-amador-fernandez-savater.htm

«La continuidad no significa que “todo sea lo mismo”, sino que unas cosas se prolongan en otras: la guerra en la paz y el terror en la democracia. Hay una cierta “fluidez” entre lo civil y lo militar, el ejército y la policía, la guerra exterior y la guerra civil. Los civiles, como Hitler o Putin, ordenan masacres, los países se invaden como operaciones de policía, las técnicas militares se emplean para reprimir revueltas sociales. La guerra es un paradigma, una manera de pensar que circula entre políticos y militares, científicos e intelectuales, expertos y periodistas.

Esa continuidad distingue la guerra moderna y la clásica. A la guerra clásica, limitada en el tiempo, el espacio y los objetivos, le sucede una “guerra total” que funde lo político y lo militar, tiene efectos devastadores sobre los civiles, moviliza todos los saberes de una sociedad y aspira a la destrucción definitiva del enemigo. ¿No se ha convertido hoy el propio capitalismo en una modalidad de “guerra total”, una conquista de territorios y una depredación de recursos ilimitada tanto en extensión como en intensidad? »


Tags: #guerra #capitalismo #paz #filosofía #Clausewitz

via dandelion* client (Source)

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Jamil Chade: Carta para Arthur do Val: a condição feminina na guerra e na paz

05/03/2022 05h30

Senhor deputado,

Confesso que não conhecia seu nome, e nem sua denominação de guerra. Mas os áudios indigestos que vazaram com seus comentários sobre a situação na Ucrânia me obrigaram a escrever aqui algumas linhas sobre o que eu vi em campos de refugiados e filas de pessoas desesperadas para escapar da guerra e da pobreza ao longo de duas décadas.

Não estou acusando o senhor e sua comitiva do que estará exposto abaixo. Mas considero que, sem entender essa dimensão do sofrimento humano, fica impossível justificar uma viagem como a que o senhor faz para ajudar a defender um povo.

Ao longo da história, a violência sexual é uma das armas de guerra mais recorrentes para desmoralizar uma sociedade. Ela não tem religião, nem raça. Ela destrói. Demonstra o poder sobre o destino não apenas das vidas, mas também dos corpos e almas.

Percorrendo campos de refugiados em três continentes, o que sempre mais me impressionou foi a vulnerabilidade das mulheres nessa situação.

Mas, antes, vamos ser claros aqui. Não precisamos sair do Brasil para saber que as mulheres, simplesmente por serem mulheres, precisam passar a vida se explicando. Como se necessitassem de chancela ou justificativa para determinar o destino de seu corpo ou coração, se podem trabalhar ou ter tesão. Intolerável, não?

Então, o senhor pode imaginar o que isso significa em tempos de guerra, onde a lei e a moral são suspensas?

Conheci certa vez uma garota yazidi. Ela me contou como, depois de sua cidade ser tomada por islamistas, ela foi transformada em escrava sexual. Aqueles olhos verdes intensos se enchiam de lágrimas quando contava que, num calabouço, ela e as demais meninas se dividiam em dois grupos.

Aquelas que rezavam para sobreviver e aquelas que rezavam para morrer logo.

Ela também me contou que, num ato de solidariedade com as outras mulheres que viriam depois delas, foi iniciado um gesto espontâneo de escrever mensagens nas paredes daqueles quartos imundos, inclusive com dicas de como agir. Escreviam com a única cor que tinham. O vermelho do sangue de suas vaginas estupradas.

O senhor me diria: claro, isso é coisa de terrorista islâmico. Sim, sem dúvida. Mas quero lhe contar o que investigações e auditorias revelaram em um local mais próximo de nós: o Haiti.

Ali e em outros locais onde estão destacadas, as tropas de paz da ONU - repletas de moral, credibilidade e protocolos - foram acusadas de estupro e de abusos com mulheres, meninas e meninos. Alguns, em troca de comida. Num caso específico, um garoto era semanalmente estuprado por oficiais, em troca de bolachas. Há até mesmo uma categoria de crianças hoje nesses países, "os filhos da ONU".

Na Sérvia, num barracão onde eram depositados os refugiados que aguardavam para chegar até a Europa Ocidental, conheci uma mulher que não falava. Sua irmã, depois, veio me explicar que ela ficou muda depois de ter sido estuprada pelo "guia" que seus pais tinham contratado na Turquia para que elas cruzassem as fronteiras. Para pagar pelo guia, os pais venderam as únicas coisas que tinham: uma casinha e dois animais.

Em Dadaab, no Quênia, entendi toda a minha ignorância quando fui perguntar para um grupo de crianças do que elas tinham mais medo. Achei que a resposta seria: as bombas de Mogadíscio. Mas era do escuro do campo de refugiados. Quando pedi para saber o motivo, uma delas sussurrou: "não podemos nem ir ao banheiro pela noite. Um homem pode fazer coisas ruins com nosso corpo".

Anos depois, voltei a viajar para a África. Da janela do avião a hélice em que eu voava, podia ver como um garoto usava um pedaço de galho para tentar dirigir o destino de vacas e outros animais. Enquanto ele conseguia dar direção ao gado, algumas reses escapavam um pouco adiante.

Do assento em que eu estava, quase não consegui ouvir quando o piloto se virou para trás e, competindo com o barulho do motor, gritou que estávamos iniciando a aterrissagem. Jamais imaginaria que, minutos depois, era sobre aquele local de terra de onde o garoto estava retirando os animais que o avião iria pousar. O que de fato eu tinha visto era a preparação da pista de pouso.

Eu tinha viajado para um lugar a oeste da cidade de Bagamoyo, na Tanzânia, para escrever sobre o impacto da Aids numa das regiões mais pobres do planeta. Mas seria naquele local que eu descobriria, de uma maneira inusitada, a dimensão do drama de imigrantes e refugiados. Ao longo dos anos, visitei campos de refugiados na fronteira do Iraque, entre o Quênia e a Somália, em Darfur, na rota entre a Turquia e a Europa. Vi milhares de pessoas sem destino. Mas, nas proximidades de Bagamoyo, aquela história era diferente. Oficialmente, não havia uma guerra. Não havia um acampamento de refugiados. Mas eu logo descobriria que nem por isso o desespero deixava de estar presente naquela população.

Eu fazia uma visita a um hospital e esperava para falar com o diretor. Por falta de médicos, ele fora chamado para fazer um parto. Sabia que aquilo significava que eu passaria horas ali, à espera de minha entrevista. Restava fazer o que eu mais gostava nessas viagens: descobrir quem estava ali, falar com as pessoas, perambular pelo local, ler os cartazes e simplesmente observar. No portão do centro de atendimento, centenas de mulheres com seus véus coloridos aguardavam de forma paciente. Tentavam afastar as moscas, num calor intenso, enquanto o choro de crianças rompia os muros descascados daquela entrada de um galpão transformado em sala de espera.

Ao caminhar para uma das alas, fui barrado. Os enfermeiros me pediram que não entrasse no local. Quando perguntei qual era a especialidade daquela área, disseram que não podiam revelar. Em partes da África, o preconceito e o estigma em relação aos pacientes de Aids obrigam os hospitais a não indicar nem em suas paredes o nome da doença. Decidi sair do prédio em ruínas e, num dos pátios do hospital, vi duas garotas brincando.

Não tinham mais de 10 anos de idade. E o único momento em que olharam para o chão, sem resposta, foi quando perguntei o que faziam ali. Mas a curiosidade delas em saber o que um rapaz branco, com um bloco de notas na mão e uma câmera fotográfica, fazia lá era maior que sua vontade de contar histórias. Desisti de seguir com minhas perguntas. Expliquei que era jornalista brasileiro e, para dizer meu nome, mostrei um cartão de visita, que acabou ficando com elas.

Quando iam responder à minha pergunta sobre os seus nomes, nossa conversa foi interrompida por uma senhora que, da porta do hospital, me avisava que o diretor já estava à disposição para a entrevista. Deixei aquelas crianças depois de menos de cinco minutos de conversa. Já caminhando, virei e disse uma das poucas expressões que tinha aprendido em suaíli: kwaheri - "adeus". Ganhei em troca dois enormes sorrisos.

Terminada a entrevista com o diretor do hospital, confesso que nem sequer notei se as meninas continuavam ou não no pátio. Estava ainda sob o choque de um pedido do gerente da clínica, que, ao terminar de me explicar o que faziam, me perguntou se eu não poderia deixar para eles qualquer comprimido que tivesse na mala. Qualquer um. Até mesmo se o prazo de validade já tivesse expirado.

Alguns meses depois, já na Suíça, abri minha caixa de correio de forma despretensiosa ao chegar em casa. Num envelope surrado e escrito à mão, chegava uma carta de Bagamoyo.

Pensei comigo: deve ser um erro e a carta deve ter sido colocada na minha caixa por engano. Eu não conheço ninguém em Bagamoyo. Mas o envelope deixava muito claro: era para Jamil Chade.

Antes mesmo de entrar em casa, deixei minha sacola no chão e abri o envelope. Uma vez mais, meu nome estava no papel, com uma letra visivelmente infantil. Eu continuava sem entender. Até que comecei a ler. No texto, em inglês, quem escrevia explicava que tinha me conhecido diante do hospital e que tinha meu endereço em Genebra por conta de um cartão que eu lhe havia deixado.

Como num sonho, as imagens daquelas garotas imediatamente apareceram em minha mente. Mas o conteúdo daquela carta era um verdadeiro pesadelo. A garota me escrevia com um apelo comovedor. "Por favor, case-se comigo e me tire daqui. Prometo que vou cuidar de você, limpar sua casa e sou muito boa cozinheira." A carta contava que sua mãe havia morrido de Aids - naquele mesmo hospital - e que seu pai também estava morto.

Cada um dos oito filhos fora buscar formas de sobreviver e ela era a última da família a ter permanecido na empobrecida cidade. "Preciso sair daqui", escrevia a garota. A cada tantas frases, uma promessa se repetia: "Eu vou te amar."

Uma observação no final parecia mais um atestado de morte: "Com as últimas moedas que eu tinha, comprei este envelope, este papel e este selo. Você é minha última esperança."

Deputado, talvez o senhor classificaria essa pessoa no grupo de "meninas fáceis". Eu, porém, chorei de desespero e de impotência diante daquele pedido de resgate.

Eu e o senhor- homens brancos - nascemos como a classe mais privilegiada do planeta. Eu e o senhor não tivemos de fazer nada para adquirir esses privilégios. Existimos.

É nossa obrigação, portanto, desmontar o processo de profunda desumanização de uma guerra e da miséria. Cada um com suas armas.

Não sei qual será o destino que a Assembleia Legislativa em São Paulo, seu partido e seus eleitores darão ao senhor. Qualquer que seja ele, só espero que esse episódio revoltante sirva para que haja alguma insurreição de consciências sobre a condição feminina. Na guerra e na paz.

Grato pela atenção

Jamil

#JamilChade #UN #ONU #guerra #war #mulheres #women #crianças #children #paz #peace #abuso #violência #MBL #Brasil #política